11:05 - A Ponte Reversa

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Alerta de gatilho: tentativa de suicídio

[Sábado, 04 de março.]

Flutuando. A sensação era parecida com voar, só que sem as asas. Ou quem sabe essa não fosse a comparação correta. Talvez, o mais certo fosse dizer que era como estar em uma piscina, boiando. Sem peso, e sem nenhuma ideia se aquilo era real ou apenas seus sentidos lhe pregando uma peça.

Irene manteve os olhos fechados, conforme as instruções de Wooyoung, mas não estava escuro atrás de suas pálpebras, muito pelo contrário: desde o primeiro instante, até o momento em que ela desistiu de fazer qualquer marcação a respeito da passagem do tempo, um festival de luzes dançava diante de si.

Primeiro, o dourado. Então, um azul tão forte que beirava ao roxo, e um roxo que se tornou preto — onde todas as cores imagináveis e aquelas que ninguém tinha pensado ainda em criar, mas que de alguma forma já existiam, rodopiavam em espirais e se desfaziam em estrelas que a lembraram de fogos de artifício.

Sentiu que estava em todo lugar, e em lugar algum. Seu corpo, esticado e puxado por mãos e linhas invisíveis, não lhe pertencia mais. Desfez-se, como uma pulseira de contas cujo fio é partido, e as partes rolam para todos os cantos, perdendo-se, na maioria dos casos.

Frio queimou-lhe a pele, e labaredas de fogo a fizeram bater os dentes, numa confusão que não só enlouqueceu seu tato, mas fez com que não tivesse dúvida.

Aquilo era Kaos. A essência pura, ponto de partida e linha de chegada em simultâneo.

Era a perfeição e a tragédia, em sua desarmonia mais harmônica.

Ela ainda sentia a presença de Hermes — ou o mais próximo de sentir que alguém poderia chegar, quando seu corpo não existia e sua consciência precisava lutar para se manter presa a uma coisa só. Havia tantos distratores. Tantas maravilhas e horrores cantando para ela, como sereias das histórias de marinheiros, ansiosas para puxá-la em direção a sua perdição...

Irene pensou que adoraria se perder. Mas não estava ali para isso.

Não durou muito, e durou uma eternidade. Não é fácil medir o tempo, onde o Tempo não existe, e também é senhor absoluto. Um sopro. Uma milha à pé. Não importava. Acabou, como tinha começado: com uma explosão de luz dourada, que ela pôde ver, mesmo estando com os olhos fechados. Mas sem choques, dessa vez.

Tal qual um astronauta que passa muito tempo no espaço, Irene estranhou a gravidade. Estranhou a sensação de seus pés sobre o chão, e se não estivesse ainda conservando o abraço em torno do deus, teria caído. Se desmanchado, embora não tão literalmente.

Reconheceu com duas viradas de cabeça onde estavam: a sala de estar de seu apartamento. Pelo vidro da janela, um vislumbre do dia lá fora se mostrava, e ele claramente estava se tornando noite. Se bem que as nuvens continuavam escuras, então podia ser apenas uma impressão.

Era estranho estar ali. Tudo era familiar, e ela deveria achar conforto em cada centímetro do que seus olhos podiam abarcar, porém o que sentia era uma irresistível vontade de sair correndo. Sem parar, até que seus joelhos cedessem. Sem destino. Correr e correr, como se fugisse de algo físico.

Não precisava de ninguém para saber que não conseguiria.

Desfazer-se durante a desmaterialização tinha, não pergunte como, evaporado a adrenalina de seu corpo. Simples assim. Tchau, tchau. Olá, cansaço, seja bem-vindo.

Irene separou-se de Wooyoung, não sem antes trocar o peso do corpo de um pé para o outro, num último teste, sentindo cada uma das dores que tinha ignorado no galpão a acertarem em cheio com um gancho de direita. Começando pelo braço meio retalhado.

Angels - SeulreneOnde histórias criam vida. Descubra agora