[Sábado, 04 de março.]
Pensou que não fosse dormir naquela noite. As justificativas eram muitas, e Irene poderia escolher aquela que melhor soasse aos seus ouvidos. Começando pela euforia que sentia. O que era, para dizer muito pouco a respeito, peculiar. Afinal, ela não tinha bebido uma única gota de absolutamente nada, a noite inteira.
Ao contrário de certas pessoas.
Irene ainda não tinha descoberto como lidar com o fato de Seulgi ter ingerido néctar, quando desacelerou o Audi emprestado de Wooyoung em frente ao pequeno prédio onde ficava seu apartamento temporário. Disse a si mesma que era por causa da natureza recente do evento, mas nem mesmo todas as falas de consolo seriam capazes de livrá-la do pensamento de que tinha sido irresponsável, deixando a bebida para trás. Tudo o que precisava fazer era levar o copo consigo. Nada daquilo teria acontecido, se o tivesse feito.
Nada, nada mesmo. Nem mesmo o beijo. Irene não tinha certeza se queria isso. E não adiantava nada, mesmo. O passado estava selado. Agora, tudo o que ela tinha que fazer era rezar a todos os deuses (sim, incluindo Wooyoung) para que a mulher amanhecesse exatamente como a tinha deixado: viva e inteira. Não uma pilha de cinzas, nem um cadáver fumegante. Viva e inteira.
Irene ainda teve de lidar com um pequeno dilema, antes de entrar. Só naquele minuto, com o carro estacionado paralelamente ao meio-fio, os aros cromados das rodas reluzindo sob a luz âmbar dos postes públicos, percebeu que não fazia a menor das ideias de onde Hermes deixava aquela coisa. Ela nunca o tinha visto por ali, exceto nas ocasiões em que precisavam dele para se deslocarem pela cidade. Irene sempre era a primeira a entrar, em seu retorno, e quando, minutos ou horas depois, lançava um olhar despropositado para a janela de sua sala, o Audi não estava mais lá. Irene tinha imaginado que poderia atribuir isso às capacidades e velocidade de manobra de Wooyoung, mas se pegou pensando se não havia nada mais, ali.
Algo um pouco menos inocente do que boas habilidades de manobrista.
De toda forma, acabou entrando. Não era como se ela fosse pegar o telefone e... atrapalhar qualquer coisa que pudesse estar em andamento.
Enquanto subia os degraus da escada, depois de breves momentos em uma sala comum vazia, com exceção das plantas e do fogo quase extinto na lareira, tentou não se atentar ao quão incômoda era a ideia de Amber e Wooyoung juntos. Não por Amber, jamais. Do muito pouco que o conhecia (a maior parte, confidências espontâneas de Seulgi, durante suas conversas), Liu figurava, facilmente, entre as três criaturas humanas mais simpáticas e doces que ela tinha conhecido, até ali.
O problema estava mesmo em Wooyoung, que ela conhecia tanto quanto (quase nada). A diferença, aqui, é que o mais básico dos fatos a respeito dele vinha acompanhado de uma grande dose de potencial para caos e destruição.
Paciência.
Na pior das hipóteses, ela ainda podia reclamar uma revanche pela sua disputa interrompida. Um caminho legal, simples e seguro para arrancar alguns dentes divinos. Só na pior das hipóteses...
Mas essas não eram as únicas coisas propensas a impedir o encontro noturno rotineiro da anjo com o Sono. Havia, como que para coroar aquele bolo de infortúnios, a descoberta macabra que fizera na casa dos Kang. Se bem que Irene não estava segura do uso da palavra "descoberta", aqui. No fim, era ela quem estava sendo observada.
O olho de tinta continuou encarando-a, todo o tempo em que esteve parada diante da porta de Seulgi. Mesmo quando venceu a linha invisível da porta, Irene tinha certeza de que a coisa ainda estava atenta a ela, aquela íris de pura escuridão se revirando, deixando ver a parte que deveria ser branca e leitosa, mas que naquele olho tinha cor de cinza e fuligem. Linhas mais escuras o serpenteavam, pequenos veios proeminentes contra o fundo claro. Os cílios espessos que envolviam-no batiam, e por uma pequenina fração de tempo a porta voltava a ser apenas uma porta, não uma manifestação física de algo que claramente não era deste mundo.
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Angels - Seulrene
Fanfic"Há mais coisas entre céus e terra do que os olhos humanos podem ver." Quando dois mundos ameaçam entrar num conflito sangrento e absurdamente desigual para um dos lados, o mais frágil, e a ameaça de uma tragédia em proporções absurdas surge no hori...