Alerta de conteúdo sensível: violência e mutilação.
[Sábado, 04 de março.]
Ainda estava chovendo, quando o motor do carro foi desligado. Os pingos grossos batiam contra o teto do veículo, e o vento açoitava as janelas impiedosamente. Pareceu a Irene uma sinfonia adequada, o pano de fundo perfeito para o que estavam prestes a fazer.
Parte dela ainda não conseguia acreditar como tinha ido, quase que literalmente, do céu ao limbo, em minutos. Não mais do que uma hora antes, ela estava sentada à mesa de Wooyoung, ouvindo-o compartilhar teorias da conspiração e piadas infames. Agora, aquele começo de dia pacífico parecia parte de um sonho distante, um pedaço de fantasia soprado para baixo do tapete por um vendaval.
Ainda não estava chovendo quando eles deixaram o prédio, mas as nuvens, mais carrancudas do que nunca, deixavam claro que o limite de ruptura se aproximava. Irene acabava de dar uma passada rápida em seu próprio apartamento, tendo finalizado as amarras de seu novo par de sapatos às pressas. Yuta não tinha dado maiores descrições do local para onde os estava enviando, na breve troca de palavras que a conduziu até aquele momento em especial, ajoelhada na entrada, dentes cerrados e coração à mil; mas a imagem, essa permaneceu em sua mente, mesmo com a eventual restauração do silêncio na ponte de comunicação. E uma boa olhada nela foi tudo o que a anjo precisou para ter certeza que suas sapatilhas... suas recém-descobertas-mas-já-amadas sapatilhas... definitivamente não eram a melhor opção para o que tinha pela frente.
Não poderia ter sido mais feliz nessa constatação. Para a sua infelicidade.
Os olhos de Irene estavam fixos à frente. Diante dela, uma grande edificação macabra no centro daquilo que um dia fora um estacionamento.
Um conjunto de construções abandonadas pelos homens, pelos deuses e pelo Tempo se espalhava para todos os lados. Eram armazéns, casas de máquinas e caldeiras. Outrora orgulhosas chaminés de tijolos vermelhos, que invariavelmente se curvaram às intempéries. Esqueletos de ferro que despontavam de paredes de concreto, deixando ver em suas entranhas a vegetação que, avançando pouco a pouco, veio a cobrir tudo.
Uma grama alta e feia, acompanhada de árvores tão pouco graciosas quanto, envolviam aquilo que um dia fora o parque industrial de Seoul. Por detrás de cercas de arame enferrujado e violado, o passado se encolhia sobre si mesmo, deixado para o esquecimento.
Dentre todos os prédios abandonados, um se destacava. O imenso galpão se erguia entre as árvores e o mato crescido, um mausoléu como todos os outros, que se diferenciava pelo simples e impressionante fato de estar mais ou menos intacto. De onde estava, Irene podia ver janelas vazadas, há muito vazias de vidro, plástico ou qualquer coisa que as preenchesse. A fachada estava inteira, com exceção deste e daquele ponto, onde parapeitos e reentrâncias tinham se expandido em rachaduras expressivas, verdadeiros cortes na superfície.
De modo geral, era uma construção tão triste como todas as outras.
Aquele lugar, outrora tão movimentado e cheio de vida, agora estava reduzido a uma cidadela fantasma, dentro de uma capital pulsante de vida.
Como todo cemitério, a velha zona industrial não era difícil de encontrar. Bastava perguntar a qualquer morador mais antigo, e funcionários de pontos estratégicos que avistassem no caminho — postos de gasolina, por exemplo. Irene tinha certeza que, mesmo sem a interferência positiva de Hermes naquela pequena atividade, ela poderia ter chegado ao local em pouquíssimo tempo. O lugar não estava se escondendo, e nem fazia questão de não ser notado.
Ao contrário deles. Ao contrário do que buscavam.
No momento em que a voz de Yuta cruzou sua mente, Irene quase caiu do banquinho onde estava sentada. Ela, que se achava portadora da novidade mais assombrosa da manhã, foi surpreendida por algo que transformava sua manchete em uma nota de rodapé. Os títulos mudaram, e rápido. E aquilo que deveria ser uma manhã apenas levemente caótica se tornou um frenesi total.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Angels - Seulrene
Fanfic"Há mais coisas entre céus e terra do que os olhos humanos podem ver." Quando dois mundos ameaçam entrar num conflito sangrento e absurdamente desigual para um dos lados, o mais frágil, e a ameaça de uma tragédia em proporções absurdas surge no hori...