09:02 - Mudança de trajeto

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[Início da noite de sábado, 22 de janeiro (Urano). Terça-feira, 08 de fevereiro (Terra).]

Cair não era exatamente como Joohyun imaginou que seria. Nos poucos minutos que a separaram de sua despedida concreta de Urano, perguntou-se pela primeira vez em meio àquilo tudo como era a experiência; pelo que vira de Hefesto nas poucas vezes em que se encontrara com ele, não haveria de ser muito agradável tampouco segura -  caso contrário o deus não se haveria mutilado para o restante de sua eterna existência.

Mas algo nos milênios entre a rejeição de Hefesto pelos demais deuses e aquele momento tinha feito os olimpianos repensarem seus conceitos, e tornarem a descida para o mundo mortal, se não mais agradável, ao menos um pouco menor turbulenta - foi o que passou por sua cabeça enquanto ela e Dami atravessavam paredes e mais paredes, sempre por dentro das sombras; nos poucos vislumbres que tinha dos corredores e das pessoas que transitavam nestes, seus rostos se resumiam em máscaras estáticas tão perfeitas, que era como se ela não estivesse se destinando para outra dimensão, a fim de cumprir uma missão tão perigosa. Questionou-se que tipo de coisa viviam ali diariamente, para que aquela situação não fosse mais considerada interessante.

Passaram por mais uma ala, e então pararam em uma sala vazia, repleta por mesas de escritório quadradas e de aparência mais antiga que a maioria dos móveis do prédio. Bem, Dami parou - e conseguiu frear no último segundo, caso contrário teria colidido com ela; maldisse os reflexos dormentes de seu novo corpo, resmungando internamente o quão desafortunada era, para que sequer tivesse tempo de treinar o uso de todas as faculdades de Irene. Rezava silenciosamente aos deuses que pudesse ao menos aprender como andar sem cair antes que se encontrasse com Kai, do contrário tudo aquilo se tornaria demasiadamente humilhante; ergueu o rosto a tempo de ver a ex bruxa caminhar em torno da sala, seus braços se erguendo e as cortinas nas janelas baixando unicamente por sua vontade, demonstrando que embora houvesse negado sua herança jamais a apagaria por completo de si. Observou-a quase estática enquanto a figura pequena e ágil se movia, de um lado a outro, abrindo gavetas e retirando objetos, dispondo-os organizadamente no chão de modo a formar um círculo perfeito; apanhou por fim uma garrafa plástica que se encontrava sobre uma das mesas, dessas que eram tão comuns na Arena de treino, retirando-lhe o lacre e a tampa, vertendo seu conteúdo em uma vasilha de cristal. Agachou-se, depositando o recipiente com cuidado na lateral interna do círculo, retirando de um dos bolsos da calça social escura uma sacola de couro, pequena e de aparência leve; desatou-lhe o nó, espalhando seu conteúdo - algum tipo de cristal - no lado oposto ao da água, em um padrão que lhe era desconhecido. Por fim, sentou-se no chão, as pernas cruzadas e a coluna reta, permanecendo de olhos fechados por alguns segundos seus lábios se movendo rapidamente, as palavras inaudíveis; lentamente e sem que seu semblante se alterasse, sua mão esquerda se ergueu, a palma voltada para cima em sua direção. Piscou uma vez, antes de avançar um passo e depois outro, até tocar sua pele - estava fria e fez com que seu braço se arrepiasse; adentrou o círculo e sentou-se de forma a imitar sua postura, percebendo pela primeira vez que era constituído exclusivamente de objetos de metal: clipes de papel, canetas tinteiro com tubos e pontas em bronze, tesouras e mesmo um compasso, todos perfeitamente alinhados de forma a compor uma linha contínua, sem uma única irregularidade, que envolvia ambos os corpos. A água dentro da vasilha ondulava levemente, embora o recipiente estivesse parado e não houvesse brisa, devido às cortinas e janelas fechadas; os cristais, à sua frente e à direita de Dami, também vibravam, embora não saíssem de seu lugar. Sua própria pele pareceu reagir, os pelos de seu corpo se arrepiando, pequenas faíscas de eletricidade circulando junto com seu sistema nervoso. Os olhos da outra mulher se abriram de súbito, as íris arroxeadas cintilando infinitas matizes de violeta e vermelho, as linhas pálidas tornando-se mais escuras ao passo que a movimentação de seus lábios diminuía, e então cessava; encarou-a com expectativa, a ansiedade crescendo a cada segundo de silêncio. Sentiu sua mão ser puxada para o centro do círculo, e ela solicitou que desse-lhe também a outra antes de finalmente falar.

Angels - SeulreneOnde histórias criam vida. Descubra agora