Eu não fico bela quando eu choro

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— Bento.

Ele vira pra mim, pausando o jogo.

— Me empresta seu barbeador?

— Você vai raspar suas... – ele aponta envergonhado para mim – intimidades com ele?

— Não, só vou raspar minhas pernas – apoio minha perna esquerda na cama para mostrar a ele – olha só como está, estou quase parecendo contigo, credo.

— Ah, sendo assim – ele respira aliviado – pode pegar, está lá na gaveta.

Pego o barbeador, aquele material na minha gaveta, a roupa que deixei separada desde ontem e vou para o banheiro. E é claro que eu estou mentindo, mas ele não precisa saber. Desde que descobri que tenho alergia as lâminas comuns, não quis arriscar e descobri que tinha essa alternativa para aparar os pelos do meu corpo, não importa qual local. Bem, tenho que estar ao menos aparada mais embaixo, não? Se não, vou me sentir como aquela personagem do Todo Mundo em Pânico 1, e tenho que me precaver ao menos com antecedência que não vou ter nenhuma reação alérgica mesmo.

O processo não demora muito, afinal não posso deixar entendido pra ele que estou o enganando. Me olho no espelho, e bem, concluo que está legal. Se eu visse como estou vendo agora, não correria, eu acho. Aparo as axilas e as pernas também. É isso aí, Vitória, com isso você não precisa mais se preocupar.

Tomo um banho demorado, e me aproprio dos produtos de beleza de Beatriz, desde o sabonete líquido de amêndoas dela ao condicionador que define o volume do cabelo. Quando saio do chuveiro, já me sinto outra mulher. Uma mulher que vai ficar ainda mais sensual quando colocar essa peça que está dentro dessa sacola. Coloca-a, e quando me olho no espelho mais uma vez, tenho vontade de rir.

Sério, não que eu esteja feia, na verdade me sinto muito bem com aquilo, mas que é engraçado eu me ver querendo ser sensual quando na verdade é mais fácil eu tropeçar na minha própria roupa e cair de cara no chão, estragando com tudo.

Coloco minha roupa, penteio o cabelo – que é a parte mais demorada, porque mesmo ele estando mais curto que o habitual, para o deixar armado e bonitinho me demanda bons minutos de pente e creme – e me perfumo com o melhor perfume que tem ali na prateleira, que é o do Bento.

E claro, não posso deixar de esterilizar até com álcool o barbeador elétrico do bento, pra não deixar nenhuma pista do meu pequeno crime. Vejo as minhas unhas mais uma vez, bem aparadas, curtas e serradas, e sinto até um certo orgulho de mim mesmo quando me vejo arrumada.

Saio de lá me sentindo imponente, como se nada pudesse me derrubar.

— Você está usando meu perfume, Vitória? – Bento cerra os olhos, me encarando de relance enquanto devolvo o barbeador para o lugar.

— Sim, mas... e aí, como eu estou?

Jogo o cabelo pro lado, fingindo ser uma modelo na passarela jogando charme. Ele encara por alguns segundos, e dá com os ombros.

— Está ajeitada.

— Vai se foder também – jogo o travesseiro em sua direção, mas ele desvia – estou saindo.

— Vai lá, até mais tarde.

No caminho, eu tento relevar meu nervosismo, mas sem sucesso. Quanto mais se aproxima da casa dela, mais nervosa eu fico. Meus ombros tremem, minha respiração fica irregular e minhas mãos estão suando. Calma, Vitória, não é nada demais, certo? Vocês são amigas, e amigas são pra essas coisas.

Quando desço, percebo que é uma péssima ideia. Respiro fundo, contando até cinco, e tento me lembrar das palavras dos meus amigos. "É só tentar, e quando fizer você vai se sentir melhor." E eles tem razão, só que, enquanto encaro sua casa na esquina, começo a ter aquele formigamento causado pelo medo.

Minha vida (não) tão chataOnde histórias criam vida. Descubra agora