Memórias de uma memória

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— O que você está fazendo aqui? – pergunto em um soluço, enxugando as lágrimas que ainda tinham.

— Eu é que te pergunto, padawan – ela dá um riso largo, tirando o cigarro da boca – não deveria estar na aula?

Dei com os ombros. Não queria falar o que aconteceu com ela justamente agora.

— Eu vim... – ela colocou o cigarro de volta na boca, tragando – resolver umas coisas com a minha irmã. O escritório dela é bem ali na esquina – Jude aponta para um prédio comercial, e estica as pernas, parecendo se espreguiçar – cara, isso me dá muita nostalgia.

— O quê? – pergunto curiosa.

— Isso – ela aponta pra mim – de estar assim de manhã com alguém. Eu estudava aqui perto, aí depois da aula, ou quando não estava matando aula eu ficava perambulando por aqui. Daí quando não – ela arqueia a sobrancelha, como se revisitasse uma memória – ficava eu e a Natália, ou a Luiza quando vinha pra cá comigo...Ah, claro, a Hai vinha às vezes matar aula aqui comigo, só que ela não fazia muito isso porque a loja do pai dela era bem ali – e aponta direto pra um salão de beleza – cara...bons tempos. Não do pai dela vir aqui xingando nós em chinês e ela morrendo de vergonha, mas de toda essa situação, entende? As coisas eram mais fáceis e... – ela franze o cenho – inocentes, eu acho.

Ela volta a fumar o cigarro, encarando por detrás dos óculos escuros a paisagem à nossa frente, totalmente imersa em suas palavras. Jude fala com tanta vivacidade que até posso imaginar suas amigas aqui, sentadas, conversando, rindo e se divertindo, ou como eu, chorando, talvez.

— Quer dizer que a Hai Yun não era uma boa aluna? – digo tentando descontrair.

— Hai Yun boa aluna? – ela me olha de soslaio, e ri – Nunca foi. Odiava a escola e tudo que ela representava, mas leve em consideração que as coisas não eram fáceis naquela época – Jude traga o cigarro novamente – porque além de ser asiática e sofrer xenofobia a torto e a direito, tinha o bônus de ser sapatão.

— A escola é uma merda mesmo – digo entre os dentes – mal vejo a hora de me formar e entrar em crise por não saber o que fazer da vida.

Jude dá uma longa risada, balançando a cabeça.

— Porra, Vitória, esse sim é um belo jeito de lidar com as coisas. Imagine quando tiver a minha idade.

— Eu espero ser como você – dou um riso de canto – uma mulher bonita e atraente que pega a menina que quiser.

— E que luta há pelo menos uns quinze anos contra os vícios e vive perdendo? – ela dá um riso sarcástico – E que se sente totalmente deslocada?

— Deslocada? – cerro as sobrancelhas – Como assim?

— Ah, padawan... – ela dá um longo suspiro, assim como uma tragada que queima boa parte do cigarro, soprando a fumaça pra cima – eu não pertenço a lugar algum. A forma que eu agia antes não me contempla mais, mas a que eu vejo também me desgosta. Veja, por exemplo...A Hai Yun, que é a minha melhor amiga desde que éramos mais novas do que você, agora é uma mulher de carreira consolidada, casada com a namorada da juventude e tem uma filha. Ela achou a felicidade na família e no trabalho. Natália, a que eu te falei, eu nem tenho mais contato com ela há pelo menos uns cinco anos e Luiza, bem...Seguimos com a nossa vida. Cada uma dessas pessoas tomou um rumo, certo?

Concordo que sim, e ela continua.

— Só eu que pareço que não. Eu fui embora do país com uns vinte e quatro anos, conheci boa parte desse mundo, gravei inúmeras coisas, ganhei prêmios, e usei drogas que as pessoas sequer podem imaginar. Quase morri de tanto usar umas cinco vezes, conheci pessoas como eu, me relacionei com outras, ri, ri muito, senti medo, prazer, paixões e tudo mais, mas...ainda assim... – ela aponta pro próprio peito – eu me sinto vazia. E pra escapar desse vazio, eu tento escapar de mim o tempo todo – ela morde os lábios – entende?

Minha vida (não) tão chataOnde histórias criam vida. Descubra agora