Capítulo 26: Tratada como tal

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Juntamos todos os arquivos da organização, levamos para a casa do Matt e agora estamos os quatro sentados no tapete olhando tudo. Papeis, pastas, caixas espalhadas pra todo canto. Débora ligou uns minutos atrás pra levar Daya para o abrigo. Ela se entenderia com Joe depois. Mesmo assim já foram cinco chamadas que fiz no telefone dele e nada. Isso me preocupa. Joe nunca deixou de atender o celular.

- Eu nunca tinha visto esses arquivos. - digo, olhando tudo, desde o início da organização.

- Quer ler pra gente? Talvez ajude em algo. - Matt diz.

Um dos arquivos que pego é do ano de 1997 dado como confidencial. Nele indica o tanto de dinheiro que Leonard investiu pra abrir os negócios. 400 bilhões de dólares.

- Onde ele conseguiu todo esse dinheiro? - Peter pergunta.

- Aqui cita o nome da construtora Union. - digo, Peter pega o notebook e começa a digitar algo. - Até hoje eles lavam o dinheiro pra conta da organização.

- A construtora Union está nas mãos de Guilhermo Caruso, herdeiro de Joel Caruso. - Peter lê. - O cara é um almofadinha nojento que usa abotoaduras de ouro.

- A construtora Union faz prédios comerciais pela cidade. - Matt diz esfregando os dedos - Eles derrubam prédios antigos pra construir as fortalezas deles. Depois vendem pra mafiosos e advogados.

- Fornecem drogas modificadas em laboratórios também - Tyler diz com uma pasta na mão - A primeira droga que forneceram para o Leonard era a Beta-X.

- Beta-X?

- É como um soro de super soldado. Aumenta a resistência, memória, agilidade, metabolismo acelerado. Como a que eu tomava, lembra? - Tyler responde e balanço a cabeça concordando - Tinha efeitos colaterais e pelo que tudo indica pararam de fornecer depois que os soldados ficavam doentes.

- Que tipo de doença? - pergunto.

- De hepatite até câncer. - Tyler respira fundo e abre outra pasta.

Volto minha atenção para o papel em minhas mãos e começo a ler em voz baixa. Nada que realmente chamasse atenção. A construtora, a mando de Joel Caruso na época, mantinha também uma firma de advogados. Passam pente fino em tudo e todos os casos eram ganhos. Pessoas que moraram nos prédios que eles colocavam o aviso de demolição entravam com uma ação pra processo e nunca ganhavam. A firma chegou a tirar das pessoas mais pobres tudo o  que restavam a elas e aos de renda média, os bens e o dinheiro. Ao todo, somam-se mais de cem bilhões de dólares em menos de seis anos.

- A Union enviava mais da metade do dinheiro pra conta do Leonard.

- Mais quanto?

- 85% - digo pausadamente - Por que uma empresa como eles do nada enviariam tudo isso de uma hora pra outra? Sendo que um mês antes, a conta fechava em 50%?

- Talvez pelo erro com a Beta-X? Podiam querer compensar as falhas - Peter levanta a hipótese.

- É difícil saber. - Matt diz - Ainda sim não seria justificativa pra uma quantia tão alta. Continuem procurando. Podemos achar algo envolvendo o novo chefe e Guimarães.

Volto minha atenção para uma caixa ao meu lado. Dentro dele um caderno de capa vintage mais velho. Tyler me olha quando seguro-o nas mãos. Peter e Matt fazem a mesma coisa. É como um diário particular com a letra de Leonard. Por interesse, folhei-o algumas páginas até parar na que mais me chama atenção. Respiro fundo algumas vezes antes de começar a ler:

- Cinco de maio de 1998. "As coisas não andam bem como eu esperava. Depois de um ano começado os negócios achei que tudo estaria certo. Mas os homens começaram a desistir. Joel diminuiu seu apoio. Estou completamente fodido. Mateo tem um mês e já se mostra esperto pra essa idade. Pelo menos depois de tantos anos uma alegria é bem vinda. Ele será um bom soldado." - mordo meu lábio e avanço mais umas páginas à frente - Seis de...

- Me dá - Peter pega o diário da minha mão - Eu termino. Seis de setembro de 2002. "Nunca imaginei na vida em ter uma menina. O bebê veio em um bom momento. Agora que o meu relacionamento com Megan não se encontra num bom estado, talvez seja a âncora que vai segurar e consertar isso". - Peter para de ler e cruzo meus braços observando-o olhar as outras páginas - Depois disso ele conta que Megan o deixou pra ficar com Lincoln. E que ela contou que o bebê era dele.

- O que mais? - pergunto, Peter franze as sobrancelhas e me olha antes de voltar à atenção para o caderno.

- 29 de abril de 2003. - Peter lê a data do meu aniversário e faz uma pausa - "Amelie nasceu hoje, depois de tanta dificuldade. Digo isso porque assim que Megan descobriu que teríamos uma menina, quis abortar. Ela tinha pavor e horror a parir uma menina". - encaro Peter petrificada sentindo meus olhos lacrimejarem. - "Demorou pra convencê-la a não abortar. O imbecil do Lincoln também tentou, mas precisei ameaça-la para ela mudar de ideia. Ele nem desconfiava de nada. Achava que Amelie havia nascido prematura. Pobre infeliz." - Peter vira a página - 30 de abril: "Deixei tudo planejado pra chegada da minha filha. Os médicos que fizeram o parto eram meus. Mantinham-me informados de tudo. Megan teve que aceitar isso querendo ou não. Achei que tudo estava bem. Até descobrir que Amelie nasceu com uma deficiência". - Peter me olha. - "Amelie foi diagnosticada com paralisia cerebral por causa de uma má formação na placenta. Meu mundo caiu de um abismo. Eu tinha tantos planos pra ela, mas eles foram interrompidos. Ela seria minha herdeira. Assumiria todos os meus negócios ao meu lado".

- É melhor parar, Pete. - Matt diz.

- Não. - digo, com a voz falha - Continua.

- 02 de maio: "A esperança é a última que morre, esse é o ditado eu acho. Nunca acreditei neles, mas agora era preciso. Já que Amelie precisa dormir no hospital por uns dias devido à paralisia, aproveitei para vê-la na maternidade sem Megan ou Lincoln saberem. É uma princesinha. Mesmo tendo nascida amaldiçoada tem traços de felicidade no rosto. Olhos azuis, mãos delicadas. Segurando-a no colo fiquei mais decidido a fazer algo".

- Amaldiçoada...

- 03 de maio. "Union me vendeu várias doses de Beta-X. Um dos meus cientistas começou a trabalhar imediatamente numa cura. Achamos um composto no veneno de uma aranha viúva negra. Tem que servir". Agora vai ser do dia 10. - Peter diz com a voz baixa - "Modificamos a Beta-X juntamente com o veneno da viúva negra. Não sabíamos ainda quais os efeitos que essa droga iria ter, mas ficamos confiantes. Às 7h da manhã do dia 06 aplicamos uma dose da substância na veia de Amelie. O resultado foi um sucesso. A doença regrediu. Na verdade ficou extinta do organismo dela. O único efeito colateral que Amelie irá desenvolver é indecifrável ainda. Não conseguimos enxergar com o exame de sangue. Mas ele está lá. Presente na corrente sanguínea dela. Ainda sim, mesmo curada, minha filha é uma aberração. Os planos pra ela vão mudar. Será tratada como tal".

As últimas palavras foram o gatilho pra me fazer desabar. Perco completamente a noção de tudo. O chão parece ficar distante. Um desconforto e uma sensação estranha tomam e apertam meu peito querendo me sufocar.

- Mel..

Escuto a voz de Tyler como se estivesse longe. Meu choro fica mais agudo e mais alto, não consigo parar. Simplesmente não consigo. Estava certa em me sentir um lixo porque é isso que eu sou. Achava que ter poderes era uma bênção, mas é só o efeito colateral de uma puta de uma droga.

- Mel, olha pra mim. - Tyler se ajoelha na minha frente tocando meu joelho. Minha primeira reação é bater na sua mão e me afastar dele. De todos eles.

É isso que faço me levanto e vou até a janela procurar um pouco de ar, mas não encontro. Apenas infindáveis lágrimas.

- É por isso que ele sempre me tratou assim. - digo em meio a soluços - Eu sou uma aberração. É isso que eu fui pra ele.

- Você não é uma aberração, Mel.

- É por isso que ele me ferrou tanto assim - digo mais alto fazendo eles me olharem - Eu não nasci à criança perfeita que ele queria, então pra ele tanto faria em ter uma filha arrombada. Uma aberração deve ser tratada como uma.

Abraço minha barriga chorando feito uma criança. Tudo o que eu sabia de mim mesma, tudo em que acreditava, era mentira. Precisei ler isso num diário pra ver que nada era como eu imaginava. Ele planejou tudo. Desde o começo manipulou a minha vida pra chegar até onde ele queria. Não me admiraria se foi ele a fazer meu pai ficar doente. Minha mãe que sempre dizia me amar me tratava como uma princesa, mas no fundo sempre me viu como um monstro, algo que ela devia ter matado antes de vir ao mundo.

SURVIVE - 2 TEMPORADA (CONCLUÍDO)Onde histórias criam vida. Descubra agora