CAPÍTULO 12

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Uma voz muito longe gritava meu nome e, por mais que eu quisesse responder, não conseguia. Alguma coisa impedia que eu gritasse. Eu tinha acabado de chegar à quadra e fui procurar minhas amigas. Subi para o último banco. Eles são um total de oito em formato de círculo, igual a qualquer ginásio. Lá de cima se tem uma visão ampla do que está acontecendo. Mais distante, eu avistei o motivo da minha raiva: Ana Clara sentada no primeiro banco de cimento com uma blusa que eu já tinha visto a Biatriz usar.
A quadra, como sempre, estava lotada “até a tampa” e, no centro, havia uma rampa montada e muitos skatistas faziam suas manobras, inclusive Biatriz — pelo menos eu achava que era ela. Quem sabe era uma disputa valendo nada? Às vezes, eles faziam isso só para aprimorar as manobras e eu não estava sabendo. Estranhei a blusa nas mãos da Ana Clara, que cheirava e olhava para mim, mas também próximo a ela, no piso do banco, tinham muitas outras blusas. Quem sabe estivessem apostando as camisas e tivessem usado a vadia para assegurar que o vencedor levaria as camisas.
A voz que me chamava estava me atrapalhando, eu ia dar uns tapas na Ana Clara para ela aprender a não fazer hora com a minha cara.
Será que a Biatriz estava ficando com a garota e não me contou e estava me enganando? Mas se eu não tinha nada com ela, como podia me enganar? Se as duas estivessem ficando, Bia poderia me contar ou não. Éramos amigas há pouco tempo, eu que provavelmente estava me enganado, isso sim, mas me enganado ou não, ia dar uma lição na abusada. Esse lance de falar “ah, eu não sou de briga” era tudo mentira do povo. Eu sou de briga e de barraco se mexem comigo. Nunca sou grosseira com outra pessoa, desde que não sejam comigo. Para ser sincera, eu tenho os dois pés na favela; para um bom barraco, era só me provocar, como essa ameba desnutrida estava fazendo agora. Corri atrás da vadia da Ana Clara. Quanto mais eu corria, mais distante ficava. Alguém me segurou e eu tentei me soltar.
― MARINAAAA, ACORDA, FILHA.
Parei de lutar e abri os olhos, assustada, procurando Ana Clara. Minha mãe estava me segurando pelos braços e gritando comigo.
― Calma, minha florzinha, você estava tendo um pesadelo.
Só então eu notei que estava chorando e com uma dor apertada. Lembrei que comecei a sentir isso quando vi Ana Clara com a blusa da Bia.
― O que te deixou assim, minha flor? Estava sonhando com o quê? ― Pobre da minha mãe, estava hiper preocupada com minhas neuras dos pesadelos.
― Não lembro. ― Eu estava ficando boa em esconder as coisas.
Na mesma hora, me arrependi, principalmente quando minha mãe me olhava com aquele olhar que parece que está procurando lá na parte mais escondida da mente e do coração. Ela me perguntava sem dizer uma palavra e, presa no seu olhar, estava difícil continuar mentindo, principalmente quando ela dava a tacada final com aquelas palavras após chamar meu nome ao invés de “minha flor”.
― Marina, não minta para sua mãe. Outro dia eu acordei tarde e ouvi você de conversinhas com a Bia... Fica olhando direto o celular... Agora há pouco estava chamando o nome da Bia. O que está acontecendo, meu amor? A verdade. ― Como se não bastasse o peso na consciência e o medo que me apossou quando minha mãe disse que eu estava chamando a Bia, ela veio com aquele cheiro de mãe que só ela tem e aquela cara linda.
Minha mãe é linda, morena marrom café, cabelos curtos na altura dos ombros totalmente crespos, uma argola minúscula nas orelhas, um sorriso que parecia a entrada para o céu. Eu amava de loucura a minha mãe. Ela sentou aquela bunda na cama, que gemeu com seu peso, chegou para mais perto e ficou fazendo carinho no meu rosto. Isso quase me fez dizer o que estava se passando comigo desde que conheci a deusa grega de olhos verdes.
Eu disse quase. Minha mãe é mãe, não ia gostar de saber que a florzinha dela estava com a cabeça virada por um belo girassol. Sorri pelo pensamento besta de comparar a outra com uma flor cheia de sementes. A gente pensa cada besteira.
― Verdade, mãezinha, eu não lembro muito. Tudo que lembro é que estava correndo atrás de alguém. ― Bem, isso não era mentira, mas também não era toda a verdade.
― E por que estava chamando o nome da Biazinha? ― Mamãe me cheirava o pescoço, o rosto, os meus cabelos, cheirar mesmo, assim como os animais fazem com os filhotes. Minha mãe cheirava a gente, nunca beijava, só os cabelos, o resto ela cheirava, e eu não consigo descrever o quanto era bom sentir esse carinho. Minhas amigas não acreditavam quando eu falava até o dia em que viram. Agora elas adoravam quando a mamãe fazia isso com elas.
― Talvez eu quisesse dar uma surra nela, mas eu não lembro.
Dona Fabiana me olhou, sorrindo para o que falei. Ela sabia que eu era esquentada e parecia ter acreditado, pois levantou passando as mãos no vestido justo com desenhos florais para retirar o amassado, deu uma arrumada nos cabelos e falou, remexendo no meu guarda-roupa:
― O treinador de vocês está lá embaixo conversando com seu pai. Parece que está acontecendo um torneio entre bairros e vocês foram convidadas.
― Sério, mamãe? A senhora não entendeu errado? ― Eu já nem ouvia mais, estava aos pulos em cima da cama, espalhando lençol, colcha e fronhas para todo lado.
Ai Senhor, será que eu podia levar outra pessoa, como sempre? Eu teria coragem de convidar Biatriz? Não sei qual desculpa ia usar, mas precisava convidar, era uma chance de fortalecer a amizade Não, eu não tinha coragem para tanto. Talvez o melhor fosse pedir a Betânia para fazer o convite. Também não. Ela iria fazer perguntas sobre o motivo do interesse. A Rosely, claro, ela me faria perguntas, mas com ela eu me sentia à vontade.
― Achei que a senhorita não queria mais jogar. Já vi que voltou atrás. Ainda bem, praticar qualquer esporte é benéfico, principalmente na sua idade. ― A voz da minha mãe me acordou dos devaneios. Enquanto ela falava, jogava umas roupas em cima da cama. Passei a observar e tirei da pilha uma blusinha que eu gostava muito.
― Filha, precisamos comprar roupas pra você, está esticando e ficando larga nas laterais e não tem nada que sirva.
― Credo, mamãe! Está me chamando de que mesmo? O que é isso de larga nas laterais? ― Fiquei me examinando sem ver nada demais, estava tudo como ontem, como na semana passada. Eu não tinha mudado, era a mesma.
― Estou dizendo que seu corpo está mudando rápido demais, tenho certeza que todas essas roupas aí já não cabem mais em você. ― Minha mãe apontou para as roupas, que realmente estavam apertadas, mas eu achava que tinham encolhido com as lavagens.
― Mamãe, vamos fazer a doação diferente dessa vez.
Minha mãe doava todas as nossas roupas para orfanato. O lema da casa era “o que não serve para você vai servir para outra pessoa” e assim era com roupas, brinquedos e livros, principalmente livros. Ela me lançou um olhar inquisidor e perguntou:
― O que está pensando, minha flor?
― Estava pensando em juntar um par de short e blusa, saia e blusa, colocar em sacos plásticos e a gente dar uma volta nas ruas e entregar aos moradores de rua.
Dona Fabiana pensou um pouco, avaliando a proposta. Ela era assim, pesava os prós e contras e só depois tomava uma decisão. E, pelo visto, ela não tinha gostado da minha sugestão.
― Melhor não, a gente nunca sabe se realmente eles precisam ou se são aproveitadores que abusam da bondade das pessoas. Pior ainda, podem trocar por droga assim que virarmos as costas. Melhor entregar ao padre e à irmã Catarina, eles saberão a quem e onde distribuir. Ainda falta eu separar a da sua irmã. ― Mamãe juntou tudo e já ia saindo. Quando se virou, deixou metade do corpo fora do quarto e ficou da cintura para cima dentro do quarto, segurando a porta com o pé.
― Ia esquecendo, filha. Eu vou dar um pulo na casa da Lu e vim te buscar para ir comigo. Ela separou umas roupas e vamos deixar no orfanato. Desça para comer algo e vamos sair em seguida.
― E o papai não reclamou porque a senhora vai sair antes do almoço? ― Sentei na beira da cama, procurando com os olhos onde tinha enfiado minha sandália, encontrando-a mais distante, próximo ao banheiro.
― Nunca dei muita importância ao que ele diz, justamente agora era que eu não ia dar. Além do mais, já, já aquela piscina vai estar cheia de amigos dele bebendo e fazendo churrasco. A Vivi e os gêmeos foram para a casa da vó de vocês, então, hoje, a tarde é nossa. ― Ela piscou e saiu. Fiquei empaquetada, essa dona Fabiana eu não conhecia, parecia uma das minhas amigas cheias de atitudes.
― Já estou indo, mamãe. ― Fui pular para chegar à sandália sem tocar os pés no piso frio e acabei caindo, toda enrolada nos lençóis. Minha mãe, ao ouvir o baque do corpo no chão, veio correndo me ajudar a me levantar.
― Cuidado, minha filha. Está machucada? Dói em algum canto? Cortou? ― Ela apalpava meus braços, rosto, estava mais nervosa do que eu. Quando percebeu que não tinha sido nada, me deu dois tapinhas na cabeça e saiu cantando uma canção que eu desconhecia.
Caprichei na minha higiene íntima. Meu corpo funcionava como um relógio. Todas as manhãs, as minhas necessidades fisiológicas eram sagradas: meia hora depois que acordava. Penteei meus cabelos revoltados e, para não ficar estressada, deixei solto mesmo. Não sei como uma pessoa pode ter cabelo para duas cabeças. Eu tinha cabelo para três. Coloquei uma blusinha de tecido leve e um short jeans de cintura alta. Nos pés, um par de sandálias de dedo. 3 gotas de perfume e estava pronta. Na hora em que me sentei no corrimão, alguém pigarreou.
― Desça como uma pessoa educada, dona Marina. Faça valer o dinheirão que pago pela sua educação. ― Ele vinha da cozinha com as coisas para assar o churrasco e, para meu azar, na hora que tinha colocado a bunda no corrimão, já sentindo a adrenalina pela descida radical.
Fiquei de pé e desci com vontade de mostrar a língua para ele. Depois me arrependi. Era meu pai, só queria meu bem. Ainda assim, ele parecia que não confiava em mim, pois só seguiu seu caminho quando cheguei ao último degrau.


         

                                                      

🏳️🌈Marina Ama Biatriz (Meu primeiro amo)r Vol. 01 ( Romance Lésbico)Onde histórias criam vida. Descubra agora