Acordei com o barulho alto de um carro de mudança freando e fazendo um barulho horrível com o atrito do pneu com o asfalto. Pouco tempo depois, ouvi vozes de homens conversando, se é que podemos chamar isso de conversa, já que eles gritavam, dando ordens e descarregando o caminhão. Dava para ouvir tudo que eles diziam, considerando que falavam alto demais e o vento transportava o som, que invadia meu quarto, entrando pela janela que estava sempre aberta.
Fiquei deitada, curtindo uma preguiça gostosa com os ouvidos apurados na mudança que estava acontecendo bem abaixo da minha janela. Era a mudança da casa da frente. A velha residência do seu Luís, enfim, ia ficar habitada, o que me alegrava muito, pois acredito que as casas guardam grandes histórias de seus proprietários, que podem ser boas ou não. Na casa do seu Luiz, eu achava que a história era triste, pois a casa me passava um ar sombrio, tinha até quem dissesse que era mal-assombrada.
Durante todo o mês, foi um entra e sai constante de trabalhadores fazendo a reforma da casa abandonada. Posso afirmar que ela ficou linda com outra roupagem. Um novo jardim havia sido plantado, trocaram as luminárias, puseram um portão automático branco desses de filme americano, ampliaram a garagem que seu Luís usava para depósito de quinquilharias. Agora era uma garagem moderna com capacidade para dois carros e uma moto.
Fiquei imaginando como deveria estar por dentro, já que, por fora, todas pareciam iguais. Sabia que na parte da frente, em cima, havia dois quartos com banheiro na lateral direita. Mais duas suítes que ficavam em frente a uma sala imensa, que mais parecia um saguão de hotel e era utilizada como uma sala comunitária com uma mesa de sinuca e uma mesa de ping-pong, computador, uma televisão na parede, vários sofás e um aparelho de som. No fundo da sala devia ter uma porta de duas bandas feita de vidro, o que daria uma linda visão da piscina, do deque e uma parte da garagem ampla. A casa era toda projetada dentro de um terreno rodeado de um jardim com árvores. Cada casa era separada da outra pelo seu muro imenso de cerca elétrica.
Particularmente, eu achava minha casa parecida com o saguão de um aeroporto. Na frente, tinha o meu quarto e o dos meus pais. Do quarto, conseguíamos ver a rua toda. Era também muito barulhento, mas eu gostava.
Então, na outra casa deveria ter uma sala igual, com quartos iguais. Como será que o novo vizinho iria decorar a única casa desocupada da rua?
— Ei, meu camarada! Cuidado com o meu violão, isso é o meu tesouro — ouvi uma voz rouca pedindo.
— Bernardo, meu filho, solta o Rex lá no quintal. O pobre do cachorro deve estar altamente estressado do tanto que ficou preso — a mesma voz que pedia ao tal Bernardo continuou a pedir para outra pessoa gritando: — Biatriz, vá ajudar seu irmão e leve a ração lá no quintal. Na lavanderia tem uma torneira, coloca bastante água pra ele.
Fiquei ouvindo a conversa nada silenciosa dos novos vizinhos. Olhei o celular, marcava oito horas. Dormi tarde assistindo 13 Reasons Why, maratonei toda a primeira temporada e, quando dei por mim, já passava das três da manhã e ainda demorei um tempão para pegar no sono. Muitas vezes passava a noite vendo série. Dessa maneira, já assisti todos os episódios de Riverdale. Gostava mais de série do que de filme, já até separei uma lista para assistir: Elite, The 100 e Wynonna Earp a barraca do beijo, amor a primeira mordida, e um monte de outros.
A mudança continuava firme e forte, o barulho só aumentava com o passar do tempo e não havia a menor possibilidade de dormir novamente. Fui até a janela dar uma espiada nos novos vizinhos.
Levantei rapidamente e quase caí enrolada no lençol e na colcha da cama ao mesmo tempo. Fiquei escorada na janela toda aberta, eu a preferia ao ar-condicionado. Não gostava muito de ligá-lo à noite, preferia só a brisa. Quando minha mãe mandou instalar no quarto dela e o exaustor de ar nos dos meus irmãos, eu não quis. Sou muito friorenta, mas mesmo assim ela mandou instalar e agora eu agradecia. Meu quarto era de frente para a rua e pegava sol o ano todo, ficava impossível demorar no quarto sem o ar estar ligado durante o dia, mas à noite, nem de me embrulhar eu gostava.
Lá embaixo, na rua, vinha de dentro da casa um garoto de mais ou menos dezesseis anos. Tinha a cara lisa, sem barba, cabelos curtos com um corte moderno, desses que ficam bem raspadinhos de um lado e do outro ficam na altura do queixo, partido de lado e ao mesmo tempo todo assanhado. Havia tantas cores que era impossível saber qual era a original. Vestia uma camisa vermelha de manga curta e outra xadrez, preta e vermelha, de manga comprida, uma calça jeans preta toda rasgada e, nos pés, usava um par de tênis que parecia que nunca tinha visto água, talvez um dia tivesse sido branco.
Entretanto, seu rosto era de cinema. Nunca, em todos os meus quase dezesseis anos, vi um rosto tão belo. Era bem afiladinho, parecendo esses deuses gregos que eu via nos livros de história das civilizações. Covinha no queixo, um piercing no canto da boca de lábios grandes igual aos do Cauã Reymond, aquele ator gato que trabalhava em uma novela que eu não lembrava o nome. Não dava pra ver a cor dos olhos.
De repente, a voz que ouvi gritando antes também veio de dentro da casa. A mulher era muito parecida com o garoto, o que me fazia crer que era sua mãe, na faixa dos seus quarenta anos, mas ainda muito bonitona. Usava uma blusa branca de mangas compridas enroladas até o cotovelo com flores azuis e amarelas, uma calça jeans mais rasgada do que a do filho e, nos pés, uma rasteirinha deixando os dedos aparecendo com esmalte vermelho. Imediatamente, imaginei que a cor original dos cabelos do garoto devia ser loiro, pois a suposta mãe era loira.
— Já escolheu seu quarto? — falava ela enquanto arrumava o cabelo do garoto para o lado.
— Já, sim. Vou ficar com aquele lá, o da janela grande. — Ele levantou a cabeça para mostrar o quarto que ficava em frente ao meu e nossos olhos se cruzaram e me perdi naquele marzão de águas verdes.
Nesse momento, recebi uma descarga elétrica de cerca de 220 volts no corpo e fiquei paralisada. Parecia até que o tempo tinha parado e nos congelado naquele olhar. Foi muito rápido e, ao mesmo tempo, muito demorado. A mulher também olhou e me viu na janela, sorriu e acenou. Logo em seguida, veio outro garoto lá de dentro da casa. Eu nem prestei atenção nele.
— Meu quarto, eu quero aquele, mãe. — Apontou para o mesmo quarto em frente ao meu.
— Impossível, sua irmã já escolheu primeiro. — A mulher foi categórica e fiquei sem entender nada, afinal, aquele projeto de deus grego também havia escolhido o mesmo quarto.
— Vai, irmãzinha, troca comigo! Esse é de frente pra rua, é barulhento, você gosta de dormir até tarde. Troca, vai?
— Não vai dar, irmãozinho, aquele é o único quarto que tem um box no banheiro e um armário embutido, portanto ele é meu.
Falou o “garoto” e novamente me olhou. Dessa vez, os dois acenaram pra mim e acenei de volta, envergonhada. Voltei para o quarto com um sorriso no rosto. Pela primeira vez na vida, olhei com interesse para alguém e minha vontade era de ficar ali olhando para o garoto que era uma garota. Estava morrendo de vergonha de mim mesma e medo, muito medo.
“Como é que pode? Ficar daquele jeito com uma garota. Será que sou lésbica? Será que esse foi o principal motivo de eu nunca ter me interessado por ninguém? Se sou assim, por que nunca nenhuma garota me interessou? E agora? Se meu pai sequer desconfiar, ele me mata.” Meus pensamentos estavam acelerados. “O que vou fazer? Fugir? Mentir? Vou fingir que está tudo bem, afinal, só quem sabe o que está acontecendo com a minha cabeça sou eu mesma e, no momento, não sei de nada. Uma coisa é certa, estou apavorada. Realmente com muito medo do que eu possa ser e muita vergonha também.”
Eu estava naquela indecisão. Era como se eu estivesse dormindo durante quase dezesseis anos e de repente acordasse e tudo que eu via à minha frente fosse aquele deus grego... Que, na verdade, era uma deusa, que me tirou do chão e me jogou na realidade da vida.
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🏳️🌈Marina Ama Biatriz (Meu primeiro amo)r Vol. 01 ( Romance Lésbico)
Roman d'amourSINOPSE Marina tem tem 15 anos faltando 4 meses para completar 16 é uma garota como outra qualquer. Negra assumida tem orgulho da cor, de uma família numerosa e cheia de amor, como toda adolescente é cheia de sonhos, e...