CAPÍTULO 04

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Hoje, sábado, oficialmente era o primeiro dia das férias. Já era quase onze da manhã e eu ainda estava na cama, sem coragem de me levantar. Ouvi duas batidas leves na minha porta. Sabia que era minha mãe, ela nunca entrava de uma vez, mesmo sabendo que eu não trancava a porta. Sempre batia e esperava que disséssemos que podia entrar.
- Posso entrar, minha flor? - Minha mãe colocou a cabeça para dentro do quarto.
- Claro, mamãe, entra. O que foi? - Ela não era de vir ao meu quarto, a não ser quando estava preocupada com qualquer coisa.
Logo, me ajeitei na cama para que ela sentasse.
- Como foi no colégio? - Notei que ela perguntou só pra iniciar uma conversa.
- Tudo bem. Passei. Agora é só aguardar uns dias para efetuar a matrícula do ano que vem.
Ela me observou com aquele olhar de mãe que parecia que estava tirando um raio-x da nossa alma. Foi assim que me senti, examinada até o último fio de cabelo.
- Se está tudo bem, então por que essa carinha de tristeza? O que está errado? - enquanto falava, massageava meus dedos do pé.
Eu adorava esse tipo de carinho, isso me deixava relaxada.
- Não sei, mamãe. Sinto falta de não sei o quê, saudade não sei de quem. Às vezes, eu me sinto sozinha, uma angústia, sei lá. É uma coisa que dói e não é dor. A senhora entende? - Eu queria muito que ela entendesse e me explicasse o porquê de eu me sentir tão estranha e diferente.
- Deite-se aqui no colo da mamãe e me explique. Desde quando você está com essas indagações aí guardadas? Se acha diferente em quê? E o mais importante, o que mais te apavora? - Minha mãe passava a mão nos meus cabelos e me olhava com aquele olhar que abraça e acalma que só mãe sabe transmitir.
- Eu não sei explicar, mas eu me sinto só mesmo quando estou no meio da multidão. Me sinto diferente das minhas colegas. É como se eu sentisse saudades de alguém que me deixou e nunca mais voltou, ou então de alguém que eu queria encontrar e que deve estar me procurando também, só que a gente nunca se encontra. É complicado, mamãe. Tem uns garotos que querem me namorar, mandam recadinhos, mensagens e eu os acho tão infantis. Não sinto nada por eles a não ser uma amizade. Tem dias que esse quarto me sufoca e não consigo entender nada. Queria ser igual às outras meninas ou então deixar de esperar por alguém especial e aceitar namorar alguém.
- Mas por que esse desespero em querer namorar, exatamente? Você ainda é muito novinha, tem uma vida toda pela frente. Você acha que, se arranjar um namoradinho, vai resolver seus problemas? - Ela passou a mão em meus cabelos numa carícia gostosa.
- Não sei ao certo... mas, mamãe, todo mundo da minha idade namora ou paquera e eu não tenho vontade de nada. A senhora acha que tá certo isso?
- Tente escutar o seu coração. Bem lá no fundo, ele dirá tudo o que você realmente quer. Busque dentro de você e me diga qualquer coisa pra que eu possa te ajudar. O que não pode é você ter esses momentos de tristeza sem motivo, principalmente agora que seu corpo está passando por uma explosão de hormônios que mexe com cada órgão seu, mas mexe muito mais com os seus neurônios. Suas escolhas estão sendo postas à prova, seus conceitos de vida estão sendo revistos, a rebeldia corre no sangue e, agora, mais do que nunca, você irá fazer suas próprias escolhas. Às vezes, serão corretas, outras nem tanto, mas quando menos você perceber, tudo isso terá passado.
- Tomara, mamãe, porque tem dias que sinto um vazio enorme. Uma falta de alguma coisa, eu não sei explicar, é como se eu estivesse no lugar e tempo errado ou se uma parte de mim estivesse faltando.
- Está tudo bem, é assim mesmo. Você está em processo de crescimento, está no meio da adolescência, onde todas as emoções vão ao extremo. Ainda irá se apaixonar muitas vezes.
- Essa eu duvido. Não consigo gostar de ninguém.
- Sem pressa, tudo tem seu tempo e com você não será diferente.
- Mas, mamãe... e essa falta que eu sinto aqui no peito? Por que dói? E por que só eu sinto? Eu converso com as meninas, ninguém sente o que sinto.
- Quantas das suas amiguinhas têm quinze anos?
- Quase desesseis, né, mamãe?! - Lembrei-a do meu aniversário, que seria daqui a quatro meses.
- Ainda é quinze. Filhinha, você precisa sair com suas coleguinhas, ir passear no shopping, cinema, ver as lojas, essas coisas que menina da sua idade gosta de fazer. Arranjar uns paqueras ou um namoradinho, o que acha?
- Mas, mãe, eu não consigo gostar de ninguém, esse é o problema! Todo mundo que eu conheço gosta de alguém, só eu que não consigo.
- Nem mesmo esse menino, amigo do Matias e do Marcos? Como é mesmo o nome dele?
- A senhora está falando do Germano?
- Esse mesmo. Os meninos falaram que ele queria falar com seu pai pra te namorar.
- Por favor, mamãe, não deixa! Por favor! - pedi, desesperada, me ajoelhando de mãos postas.
- Ei, calma! Marcos desencorajou o coitado. Falou que você é muito nova e, se ele viesse aqui, era capaz de seu pai pôr ele pra correr - falou, me deixando mais calma. - Filha... pensar em namorar te deixa assim tão angustiada?
- Sim e eu não entendo. Todo mundo tem alguém, mas só o fato de pensar em ter um namorado ou paquera me deixa... Sei lá como eu fico.
Minha mãe se aproximou e segurou minha mão, olhando dentro dos meus olhos. Então perguntou:
- E por alguma coleguinha sua, já sentiu algo diferente?
Fui pega despreparada.
- Mãe?! - gritei, apavorada e vermelha.
- Ei! Só estou tentando te entender. Afinal, isso é tão normal hoje em dia.
- Eu sei lá. No colégio, tem umas meninas que ficam com outras, tem até uma que mandou um recado pra mim. Não, eu não consigo gostar de ninguém, nem menino e nem menina. Será que eu sou doente?
- Claro que não, meu bebê. Só não chegou a sua hora, mas ela vai chegar. Logo a nossa porta vai estar cheia de rapazes querendo namorar você. Quando seu príncipe chegar, você nem vai notar. Quando perceber, já estará caidinha de amores. Enquanto isso, vá viver a sua idade e nada de ficar trancada chorando. Promete?
- Prometo que vou tentar, mas, mamãe, eu acho uma chatice. As minhas colegas do colegio só falam besteira.
- Troque de colegas, arranje umas mais velhas. Aliás, essas meninas do jogo são bem alegres. Vá ao shoping, cinema, praia com elas, talvez você goste. - Riu, achando engraçadas minhas lamentações. - Agora, vá tomar um banho e desça para comer alguma coisa.
- Mamãe, eu vou sair do time.
- Por quê? Você gosta tanto. Aconteceu alguma coisa?
- Não, tá tudo bem. É que eu não jogo lá essas coisas e estamos numa fase decisiva. Chegou uma menina que joga um bolão, acho que dessa vez a gente ganha o torneio. Não quero atrapalhar.
- Já falou com seu treinador? Não saia agora, deixe em aberto. Lá na frente você decide se quer mesmo sair.
Minha mãe nos incentivava a fazer qualquer esporte. No meu caso, ela brigava até com meu pai, que não gostava muito da ideia de mulher jogar bola. Para ser sincera, meu pai acreditava que mulher só servia para ser mãe e cuidar da casa e do marido, ou seja, ser escrava do lar.
- Vou pensar, mas não quero mais jogar oficialmente, só treinar com a galera e viajar com o time. Gosto dos passeios - falei.
- Você gosta é de se mandar sozinha sem a gente, isso sim. - Ela pegou o travesseiro e jogou na minha cara. - Seu pai só deixa porque ele e o Valdomiro, além de compadres, são amigos desde moleques. Cresceram juntos. - Enquanto eu ria dela fazendo graça comigo na cama, minha irmã mais nova entrou de uma vez e pulou em cima de nós.
- É brincadeira de guerra? Eu também vou! - Virgínia gritou enquanto entrava na brincadeira.
Minha mãe ficou um tempo ainda fingindo nos sufocar com o travesseiro, mas em seguida ordenou:
- As duas vão tomar banho e descer pro almoço. Cinco minutos para arrumar essa bagunça - falou e saiu cantando.
Assim que seus passos e sua voz soaram lá embaixo, minha irmã se virou para mim e perguntou:
- Você não contou para ela, né? Aquele lance do beijo.
- Não, mas você devia contar. A mamãe é compreensiva e vai saber dizer se você agiu certo ou errado - falei, segurando os cabelos lisos dela e fazendo duas tranças. Ela adorava esse tipo de penteado.
Minha irmã era a única da família que não tinha o nome com a inicial "M". Eu ainda iria perguntar a mamãe o porquê de ela ter fugido à regra e por que ela não se parecia com nenhum de nós. Virgínia era a cara da minha avó materna enquanto o resto de nós éramos uma mistura de pai e mãe. Eu era a cópia da minha mãe com a altura do meu pai. Meus irmãos, Marcelo, Matias e Marcos, se pareciamm com a mamãe. Só Mateus e as crianças eram a cara do papai.
- E o que vocês tanto falavam? - Vivi me arrancou dos pensamentos.
- Sobre mim. Eu estou me sentindo estranha, não consigo gostar de ninguém. Até você, que é mais nova do que eu, já beijou e eu nem vontade tenho - acabei confessando.
- Pois não está perdendo nada. Eu pensava que fosse bom, mas o garoto vem e encosta a boca na sua, enfia a língua dentro da sua boca ou você enfia a sua na boca dele e pronto. Ele baba sua boca toda, eu achei nojento - Vivi confessou como se fosse expert em beijos.
Só porque beijou uma vez, se achava a tal, mas se fosse comparar nós duas, ela saía na frente. Mesmo assim, eu achava que o beijo era para ser tudo, como o batismo de duas pessoas que se gostam, por isso eu não queria beijar ninguém. Eu queria gostar primeiro da pessoa.
Ficamos ainda mais um pouco brincando até mamãe voltar a gritar ao pé da escada. Corremos para o banho, jogando as roupas em todo canto. Tia Laura ia ter um pouquinho de trabalho dessa vez. Antes de descer, passei uma olhada no quarto. Estava um verdadeiro campo de guerra.

🏳️🌈Marina Ama Biatriz (Meu primeiro amo)r Vol. 01 ( Romance Lésbico)Onde histórias criam vida. Descubra agora