Capítulo Dezenove

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Era claro que eu tinha um problema com sangue. O sangue de Mica era clareado pelos faróis, então se mostrava mais vermelho do que é. E mais brilhante. Eu fiquei hipnotizado por aquela cor e me senti enjoado ao mesmo tempo, porque restos do meu melhor amigo e primeira paixão estavam espalhados pela rua. E quer saber qual foi a primeira coisa que as pessoas fizeram quando se aproximaram? Posso apostar que "chamar ajuda" é o primeiro palpite. Bom. Não. Elas tiraram fotos. Por minutos!

Mica morreu ao se jogar em frente ao ônibus depois de falar para algo para mim. Ele disse "Espero que entenda" e se foi. Então veio a buzina, a batida na calçada, minha cabeça rodando. Dor e cheiro de sangue. Meu pai, os pais dele.

Com Regina... os olhos dela demonstravam as mesmas palavras.

Espero que entenda.

Espero que entenda.

Eu queria começar a entender porque as pessoas que eu amo, as poucas que eu amo, estão indo embora. Não quero parecer assustado com isso, quero ser forte e ser aquele que diz "Acontece, é a vida, afinal", mas a verdade é que estou com medo de ter que ver todo mundo ir embora mesmo que eu saiba que um dia eu irei também. Perder pessoas é assustador, ainda mais amigos. Porque você não convive com eles sempre e quando convive, momentos bons acontecem. Então são os momentos que mais me lembro de ser feliz são com meus amigos. E eles estão mortos.

Mas deixei que Denis virasse meu amigo. Deixei que Arthur também o fizesse, além de Vinci, é claro. Então agora tenho três amigos e isso parece muito. Muito assustador. Muito maior do que... sabe... o que eu tinha em mente. Há duas semanas estou tentando andar na linha. Há duas semanas eu tenho rido com eles, criado conversas. Uma evolução, eu reconheço. Mas não consigo parar de notar como o acontecimento de Andrei mexeu com as estruturas da Katharine. Todos andam nervosos e as conversas entre amigos ficaram menores, os alunos andavam se evitando. Parecia que haviam derramado um veneno com aquela água sanitária para que alguns laços fossem desfeitos. O pai de Andrei apareceu aqui, mas parecia completamente calmo com exceção dos olhos vermelhos. Entrou na sala de Linda quando eu entrava na sala de português. Somente ao final das duas aulas eu o vi indo embora. Me incomodava a falta de afeto que os pais acostumaram-se a ter com os filhos. Se eu pudesse escrever uma carta para todos os pais do mundo eu diria para terem paciência e demonstrar fidelidade conosco, porque, como Andrei, em um momento estamos aqui e em outro decidimos não estar. E deve ser difícil para todo mundo perder alguém.

Eu chorei por Andrei. Chorei por Mica, por Regina, por minha mãe e por mais pessoas que morrem todos os dias por aí da qual eu nunca vou saber os nomes. E tudo bem. Eu só precisava que o rio de lágrimas saísse do meu corpo por tempo o suficiente para meu corpo levar horas para se regenerar.

Eu queria, às vezes, manipular o tempo. Assim eu poderia ter mudado tudo do meu passado. Mas aí vem um problema. Quem eu seria no presente? Alguém melhor? Como?

Provavelmente eu ainda estaria com meus amigos, um elo ainda vivo, mas e se tudo desse errado mesmo assim? Nada é certo, nem mesmo o certo. Mica e Regina poderiam ter decidido me abandonar, nada os impedia de fazer isso, nem mesmo os anos de amizade. Tudo que é construído pode ser quebrado e não importa tanto o impacto, o que importa é o que ali vai ser depois. Uma área verde e bonita ou uma área com arames farpados e cobras venenosas esgueirando-se por aí. Eu havia me transformado em arame farpado e cobras e deixei que as coisas ao meu redor acontecessem do jeito que são, porque desisti de querer ou tentar mudar o tempo, as pessoas, o modo como às coisas são. A vontade de tê-los aqui não os trará de volta. Aprendi isso no dia seguinte, quando desejei que tudo fosse um sonho. Uma série de sonhos ruins, algo raro em alguém, mas que acontecia. Meu pai não me deixou afundar porque ele precisava de mim são e salvo para ser uma cópia sua e por isso, estou tentando, estou tentando tanto que dói.

Mas a dor não começa no peito. Começa perto da nuca e dali, se arrasta para a cabeça, para atrás dos olhos e finalmente para o coração. Era o cansaço de tentar mudar. Ser único às vezes era tão cansativo quanto tentar fazer parte de algo.

Usei os fones de ouvido de Vinci mais do que gostaria. Agora as politicas das Águias ficaram mais rígidas. Haviam as "batidas". Eles receberam um cartão que dava acesso a todos os quartos e tinham que entrar em cada um para saber se os alunos estavam mesmo dormindo. Ainda na mesma; mulheres no corredor das meninas e os caras neste corredor.

Sempre que acontece a batida — geralmente às nove da noite em ponto — eu escondo os fones e o celular. Arthur já sabia da existência deles, então me ajuda a manter segredo. Ele fica na cama, lendo com a ajuda de uma lanterna móvel e bem forte comparando-se com o tamanho. Quem vai ao nosso quarto é um cara alto e de corte de cabelo militar, olhos escuros e, por mais que eu pensei estar imaginando, ele tinha mesmo uma faixa em um dos olhos. Como se tivesse perdido aquele lá. Tentei não pensar nisso, porque logo eu estaria criando uma história para aquele olho perdido, na minha cabeça.

Minhas noites se resumiram a nenhuma visita de Vinci, escutar músicas, olhar Arthur ler e, às vezes, ler com ele. Ficar olhando as Águias lá fora irem e virem. 

Entrelinhas (Romance Gay)Onde histórias criam vida. Descubra agora