Capítulo Trinta e Dois

49 5 0
                                    

Arthur, Carla, Ítalo e Théo entraram no quarto com seus instrumentos. O violão nas costas do meu namorado, Carla segurava um baixo, Ítalo um pandeiro e Théo um chocalho. Eu não sabia como eles faziam música com isso tudo, mas devem conseguir. O cabelo de Arthur está grudado na testa pelo suor. Carla está rindo de algo que Théo falou e Ítalo acena para mim.

Arthur me beija suavemente antes de perguntar se peguei o post-it de hoje. Sorrindo, digo que sim.

O papel ainda está no meu bolso.

— Vocês estão ensaiando para algo? — Perguntei.

Arthur deixou que os amigos dele se sentassem em sua cama. Ele estava na minha, com a cabeça no meu colo e as pernas para fora do colchão.

Os cabelos ondulados de Ítalo estavam para todos os lados, como se ele tivesse corrido. Ele estava ofegante quando chegou então talvez tenha apostado corrida com Théo ate chegarem aqui.

Tento não pensar nas coisas que Vinci me contou sobre eles. Principalmente sobre Théo que se envolveu em uma briga de bar com os amigos da escola e acabou acertando uma garrafa de cerveja em um deles e depois usou um paralelepípedo pra acertá-lo de novo. Ele era agressivo. E bebia. Os pais dele são médicos, por isso Théo vivia mais com o tio, que já foi preso. Não sei as coisas que ele passou, as coisas que aprendeu. Ele parece ser uma boa pessoa, ele sequer grita. Mas não está aqui atoa. Todos os pais devem ter colocados seus filhos aqui com esperança de que eles ficassem na linha, vim pra cá por isso também, porque meu pai afirmou que eu estava traumatizado com os acontecimentos do passado. Vai ser bom, ele havia dito e não dado espaço para que eu discordasse. Se eu tentasse discordar poderia acabar acontecendo um bate boca infinito entre nós.

— Ensaiamos por diversão — Carla masca chiclete. Faz uma bola e depois a estoura com os dentes — mas também estamos ensaiando para tocar na formatura.

— Nós tocamos no começo e no final — Ítalo diz.

Não digo nada. Ítalo também não parece ser o que ouvi dele. Viciado. Vinci tinha um pequeno pacote de maconha à mesa quando Linda me mostrou o quarto. O escondi e depois o entreguei. Se era pra ele, se era para outra pessoa não sei. Eu sabia os efeitos da heroína e sabia que não era tão fácil assim deixar de usá-la. Ítalo deve enfrentar um desafio todo santo dia. Sinto uma pontada de empatia por ele.

Mas não por Carla.

Não que eu não gostasse dela, não tem nada a ver. Ela é legal, engraçada, somos parecidos em algumas coisas e Arthur me contou que eles eram amigos antes mesmo de estarem aqui. O irmão de Arthur adora Carla. Acho que o único problema é o fato de Carla me olhar como meu pai me olha. Como se não... acreditasse em mim. Sabe quando contamos algo a alguém e essa pessoa apenas ri e fala "aham, sei" ou algo do gênero? Carla é assim. Ela não acha que alguém pode conseguir algo se ela não concordar. Quando disse que meu pai era advogado ela ficou encantada, mas esse encanto acabou logo quando eu disse que não queria seguir a mesma carreira que ele. Ela perguntou o que eu queria ser. E eu já senti ali uma farpa, uma provocação que eu aceitei participar. Eu disse a ela que queria ser artista, desenhar para as pessoas e para mim, ilustrar livros infantis e participar de eventos com pessoas com os desejos iguais. Carla apenas perguntou se eu queria passar fome. Nosso país, o Brasil, não valoriza muito pessoas que não escolhem ser advogados, médicos...

— Não tem problema — eu havia dito logo depois — eu tenho confiança em mim.

E ela apenas assentiu e disse "Aham, sei".

Eu estava cansado da pressão para conseguir uma profissão que pagasse bastante. Eu queria trabalha com que gostava e mesmo que ainda me recuse a desenhar, eu quero vencer esse medo da minha vida e transformá-lo em algo que eu goste. E ninguém deveria perguntar se eu queria passar fome por isso.

Não alonguei mais o assunto; queria as opiniões de Carla sobre meu futuro bem longe de mim.

Quando disse a Arthur que ainda não sabia o que queria ser estava falando a verdade. Desenhar é ainda, apenas um antigo hobby. Gostei que Arthur disse que me entendia. E é só por esse motivo, por ele me entender, que eu engulo e esqueço tudo o que sei sobre ele e os amigos.

Á meia-noite ouvi a voz de Arthur enquanto tentava dormir. Nossa revista já havia sido feita. O Águia olhou especialmente para mim quando fechou a porta.

— Aconteceu alguma coisa?

— Não — respondi.

Meus olhos estavam vermelhos e meu peito, queimando.

Minha garganta oscilava e eu sentia meu nariz coçando e quase totalmente entupido. E minha cabeça latejava, ainda por cima.

Eu estava tentando chorar silenciosamente, fiquei muito bom nisso.

— Atlas... Queria perguntar como foi o seu dia, mas vivemos sob a mesma escola e fazemos tudo durante seis dias da semana. Não é uma pergunta que tenha sentido. Então... Ao invés disso vou perguntar: Você está bem?

Assinto — então lembro que ele não pode me ver.

A chuva está barulhenta e as nuvens cobriram a pouca luz da lua que entrava no nosso quarto pela janela. Meu peito doía e eu me senti tentado a abrir a janela e lavar meu rosto com a chuva. Eu queria lavar minha alma com a chuva.

— Estou normal — foi o que eu disse.

E foi o que Arthur aceitou. Ele disse "Que bom" e me desejou boa noite. Ele dormiu, mas eu não.

Eu ainda chorei um pouco mais. E acho que chorei por tudo, Por Allan e Vinci, que tinham uma relação como uma estrada esburacada. Chorei por aquela menina que foi mordida e tem olhos tristes, e toda vez que me lembro dela me lembro do grito e toda vez que essas duas coisas irrompem na minha mente, sinto um aperto no peito gritando para que eu fizesse algo por ela. Mesmo não podendo fazer nada. Porque aqui dentro eu não tenho poder algum. E chorei também por Andrei, e não é a primeira vez que choro por ele. Eu nem mesmo o conhecia, mas isso não me impede de lembrar do rosto dele, dos momentos que passamos um pelo outro no corredor. Meu coração se aperta em um nível quase excruciante e me lembro que uma vez, minha mãe me disse que quando alguém morre e não há ninguém para chorar por ela, uma pessoa aleatória chora sem saber o porquê; por muitas noites eu chorei por todas as pessoas que morreram e não tinham ninguém para chorar por elas. E ao lembrar disso tento parar de chorar... mas o rosto da minha mãe se completa na minha cabeça, como um quebra=cabeça e ela é tão linda. Não tenho os olhos dela, nem o cabelo, nem a fisionomia. Sou todo o meu pai. Mas gosto de pensar que herdei o sorriso dela. O sorriso realmente feliz. Os melhores sorrisos que dei foi com ela, minhas bochechas doíam de tanto que rimos juntos. Espero que minha mãe saiba que gosto do meu sorriso e ainda lembro do sorriso dela. Espero que Jasmim saiba que pode conversar comigo; e espero que Vinci saiba que...

Pisco.

Não consigo pensar em nada. Não consigo pensar porque minha mente desbloqueou algo. Algo que me fez ficar elétrico, como se tivesse tomado café demais. Levantei da cama com cuidado. Meus pés, ao tocarem no chão frio, levaram um pequeno choque. Mas continuei a andar. A ideia não ia desaparecer, eu tinha certeza disso. Eu a segurava com correntes e meu peito clamava que ela se mante-se viva. Meus dedos coçavam de ansiedade quando toquei no lápis e ajustei a folha abaixo, e então, eu desenhei.

E só parei quando o rosto de Vinci estava na folha de papel. O cabelo cacheado nas pontas na frente dos olhos mas ele está com a touca, a mesma que vi ele usando uma vez e pensei que ele ficava bonito com ela. Não consegui tirar aquele momento da cabeça. E rosto dele está sorridente como no dia em que falamos sobre os nossos nomes, mesmo depois de tudo. E os lábios dele estavam desenhados com uma precisão incrível. Incialmente, pensei que seria o rosto de Arthur que eu desenharia. Mas não consegui, foi o rosto de Vinci.

E ficou incrível.

Entrelinhas (Romance Gay)Onde histórias criam vida. Descubra agora