Prólogo

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O cheiro marcante dos grãos que acabaram de ser triturados e aos poucos humedecidos pela água quente que escorria pelo coador era uma fragrância que inundava diariamente aquele estabelecimento. Ainda eram dez da manhã, a clientela passava pela porta de vidro aos montes, sempre anunciado pelo tilintar doce do sininho, enquanto isso, o movimento exigia grande concentração de Harumi que se dividia em atender, coar o café com cuidado e tirar as fornadas de salgados feitos a mão do forno.

Um novo casal entrou se acomodando em uma mesa próxima a pequena televisão onde o noticiário passava em um volume baixo para não atrapalhar nenhum cliente. Harumi pegou seu pequeno bloco de papel temático onde tomava nota de cada pedido e se aproximou, com seu sorriso mais radiante e as roupas perfeitamente arrumadas.

— Bom dia, posso anotar seus pedidos?

— Bom dia — A mulher foi a primeira a dizer, ainda observando o cardápio antes de encarar a atendente. Seu corpo era em um tom avermelhado como seus cabelos que lembravam grandes labaredas — Vou querer um expresso sem açúcar e um pão de melão.

— E o senhor? — Questionou assim que terminou de rabiscar em seu papel o primeiro pedido.

— Um nikuman e um mocha — Em um leve suspiro, agradeceu ter preparado uma remessa de pão recheado com carne de porco durante aquela madrugada de insônia, não teria de avisar sobre a raridade daquele prato em seu estabelecimento, seria menos uma dor de cabeça para ela.

E antes que pudesse se afastar, escutou um burburinho tomar conta do estabelecimento, os olhos atentos na televisão enquanto a repórter questionava um dos heróis profissionais. Não que Harumi se importasse muito, viu tantos ao longo de sua vida que aquele fascínio adolescente passou, apenas os respeitava e sabia de sua importância diante de uma sociedade tão cheia de poderes.

— Harumi-chan, aumenta o som por favor — Uma de suas clientes regulares a pediu enquanto observava atentamente o noticiário. A barista foi até seu balcão e pegando o controle, deu algumas pequenas apertadas no botão de aumento do volume deixando o som mais audível para todos — Obrigada.

— Senhor Hawks, poderia falar sobre o ataque de ontem? — A jovem jornalista tentava conter sua animação em nome do profissionalismo, mas as bochechas coradas enquanto o homem alado lhe observava era bem evidente.

— Não precisa do senhor, temos a mesma idade — Falou em um tom brincalhão com uma piscadinha de olho no final, ele de fato era bem carismático — O ataque a unidade central das fabricas R.I.S foram realizadas por antigos funcionários, a maioria deles com individualidades que não representava grande perigo as instalações.

— Todos foram presos?

— Isso mesmo, todos foram devidamente contidos e levados para a delegacia — O herói profissional disse dando um galanteador sorriso para a jovem.

— Muito obrigada herói profissional Hawks — A jovem disse se despedindo antes que as grandes asas vermelhas tomassem altura o levando para longe das câmeras. Todos desviaram a atenção da jornalista que finalizava sua participação com uma saudosa despedida, então Harumi diminuiu o volume da televisão.

Harumi pegou um punhado dos grãos recém torrados e os colocou em sua máquina de triturar profissional, o resultado, um pó fino de coloração escura foi posta dentro de um coador de papel já devidamente preparado para que a quantia de água fervente que molharia aquela camada de café não ficasse com o gosto do coador de mercado. Por fim, terminou cada bebida e as levou para seus clientes antes de buscar os pães que soltavam aquela fumaça que indicava ter acabado de ser retirado do forno.

Harumi sorriu, indo para a mesa agora vazia retirando o lixo deixado limpando a toalha de plástico sobre a madeira escura. Essa era sua rotina, de segunda a segunda, das seis da manhã até as duas da tarde onde ela poderia finalmente finalizar seu expediente e começar a preparar as receitas para o próximo dia.




Eram quase oito da noite quando terminou tudo que deveria fazer. Aquela carga de café que havia pedido foi um exagero a parte, tantos sacos que ela teve um grande trabalho de carregar para seu estoque sozinha, além do preparo de uma bebida com os grãos de amostra de uma nova torra feita no exterior, Harumi era realmente cuidadosa com tudo que envolvia sua pequena cafeteria.

As receitas de pães de bolos estavam bem guardadas e teriam seus términos no próximo dia, agora a mulher de longos cabelos platinados os exibia sem qualquer adereço que evitasse algum acidente gastronômico enquanto andava pelas escuras ruas. Sua casa não era tão longe dali, no entanto, ainda teria de passar no mercadinho para comprar os ingredientes de seu jantar.

Ao se aproximar da porta do mercado, observou algumas pessoas dentro do lugar antes de o abrir. Estava cheio de adolescentes que estavam finalizando seu encontro em grupo comprando sorvete, Harumi sentiu saudades das várias vezes que pode presenciar essa mesma cena, mas no lugar de algum deles com sua turma da faculdade, sempre foi divertido, mas ela logo cansou.

Pegou sua cesta e foi em direção das várias prateleiras de metal, procurou primeiro produtos de higiene que estavam em falta, depois, pegou alguns legumes para poder preparar um prato rápido e, quando passou pela cessão de miojos, acabou falhando em se segurar para não os levar, queria manter a alimentação saudável, mas o novo sabor acabou a deixando curiosa.

Foi para o caixa, agora o ambiente estava em silencio sem a presença do grupo jovem e animado. A caixa passava sua compra sem muita pressa, os olhos desinteressados enquanto encarava os produtos que a platinada escolheu para aquela noite, quando aqueles minutos que pareceram anos acabou, pagou e saiu a passos rápidos.

Quanto antes chegasse em casa, mais rápido iria tomar um banho, jantar e finalmente dormir. Harumi gostava que tudo fosse feito rápido para poder dormir e repor a noite anterior perdida, mas quando as sacolas pesaram, teve de as colocar por um segundo no chão para recuperar o folego.

Aquelas ruas estavam escuras demais, Harumi vivia se perguntando quando teriam as lâmpadas quebradas trocadas para ser mais seguras aos transeuntes da região, parecia até que não haviam reclamações daquilo para os responsáveis. Suspirou, tomando animo para continuar a viagem, puxou as sacolas e somente parou no lugar quando um barulho atraiu sua atenção.

— Passa o celular — A voz era em um tom alto, vinha da esquina ao lado que Harumi estava passando, os olhos castanhos foram em direção do único poste de luz vendo duas silhuetas, a de uma das jovens que estava no mercadinho e de um homem na faixa dos trinta anos.

Harumi deixou suas sacolas no canto de um cercado vivo, em frente à casa de luzes apagadas indo em direção das duas silhuetas em passos cuidadosos.

— Eu não trouxe comigo, eu juro — A voz feminina falou, levantando as mãos em pânico. Harumi olhava a procura de alguma arma de fogo, mas o homem possuía apenas uma faca que mirada, ameaçava a jovem de cabelos castanhos — Moço, eu não tenho poderes. Eu não trouxe meu celular e dei todo dinheiro que eu tinha...

— Cala a boca, vadia! Eu sei que está escondendo o celular em algum bolso — Sacudiu a faca em direção da garota que deu alguns passos para trás em pânico. Se ambas tivessem poderes, poderiam resolver aquilo facilmente, ele parecia também só possuir a faca como arma, mas Harumi precisava tomar cuidado para que a garota não fosse cortada no processo.

— Cadê os heróis nessa hora? — Falou baixinho, um sussurro enquanto colocava sua cabeça para pensar, encarou tudo em volta de seus pés logo tendo uma ideia — Só temos essa chance, de certo, por favor.

Harumi atirou uma pedra que havia visto na beirada da calçada com toda força em direção do homem. Com o impacto, o corpo masculino cambaleou alguns passos para trás e deu abertura suficiente para que a menina corresse um pouco e, antes que o marginal conseguisse reagir, Harumi correu com toda velocidade em direção dele.

A faca estava rente ao corpo, ele iria provavelmente a golpear pelas costas, mas com os sentidos confusos devido o choque com a pedra, nem raciocinou a silhueta vindo e se chocando contra ele o jogando para trás. Harumi apenas sentiu a dor quando o grito da adolescente invadiu o ar, agora ela poderia correr em busca de ajuda em um lugar seguro.

— Desgraçado — Harumi falou desferindo um soco no rosto do homem — Ameaçando uma garotinha! Desgraçado!

Algumas gotas caíram no rosto masculino, seu peito ardia, mas seria ainda pior tirar a faca do local onde estava cravada, ela servia querendo ou não para segurar uma fonte ainda maior de sangue que iria sair logo que fosse removida indevidamente. Harumi encarou o homem inconsciente e pensou se havia o matado, aproximou seu rosto da boca para escutar sua respiração, no entanto, a armadilha funcionou tão bem que somente sentiu quando o primeiro golpe foi desferido em seu rosto.

O homem desferiu um, dois, três socos consecutivos na face delicada, mas exausta da rotina de trabalho, os lábios antes tingidos por poucas gotas de sangue estavam tomando uma cor puxada ao roxo devido aos golpes na região. Ela tentou impulsionar seu corpo para frente e para os lados, mas nada o tirava de cima dela, tentou desferir um golpe, mas estava tão fraca que parecia mais cocegas.

Não queria isso, ela sempre evitava aquele final, mas quantas vezes já não ocorreu o mesmo tipo de destino? Então, apenas fechou os olhos enquanto suspirava de maneira cansada, deitou as mãos no asfalto e sentiu mais um golpe em sua face sendo dada com toda a raiva. Era esse seu final, certo? Ela teria de passar por tudo aquilo novamente e se não desse certo, uma burocracia gigantesca cheia de dinheiro envolvido, tudo que Harumi fazia era reclamar enquanto pensava em um novo nome caso precisasse.

Então, quando sentiu seu rosto formigar em mais um soco, entendeu que logo não iria mais aguentar. Seu corpo estava pesado por si só, mas aquele corpo de 70 ou até mais quilos sobre sua barriga piorava a respiração.

— Aqui! — A voz feminina gritou e Harumi só pode reclamar por ela não ter fugido, mais alguns barulhos aconteceram e sua visão não estava boa com as gotas de sangue respingando em seus olhos para que pudesse enxergar o que havia acontecido.

Porém, em frações de segundos seu peito novamente se encheu de ar em uma respiração consideravelmente mais fácil. O peso sobre sua barriga havia sumido e agora o som do lado esquerdo de seu ouvido estava maior, Harumi levou a mão até o rosto puxando a camada vermelha para longe de seus olhos podendo finalmente os abrir sem arder tanto.

— Um herói? — Questionou de maneira cansada vendo algumas penas em tom carmesim se agruparem em forma de uma longa e exuberante par de asas — Oh... Eu me lembro de você...

O herói se levantou depois de atacar o bandido, foi até o corpo caído de Harumi e se aproximando, tomou os dedos que envolviam o cabo da faca não deixando que a platinada a arrancasse.

— É melhor não tirar, uma ambulância está a caminho — Hawks falou com uma voz calma tentando confortar a mulher caída a sua frente. Harumi coçou a garganta fraca em busca de uma voz mais audível — Não faça esforço, você foi golpeada em uma região perigosa, mas vai dar tudo certo, respire fundo e aguente mais um pouco.

— Você tem água? — Harumi questionou quando sua voz finalmente saiu um pouco melhor — Pode ser pano também, eu não consigo enxergar direito com esse sangue todo na minha cara.

—Oh! — O herói se assustou um pouco com a pergunta repentina, mas logo levou sua mão até os bolsos puxando um pequeno pedaço de pano — Feche os olhos, vou passar para você.

— Pode ficar tranquilo — Harumi riu pegando com calma o tecido branco das mãos masculinas o levando para a direção de seu rosto — Eu fui golpeada, não morta.

— Não deveria fazer esforço — Hawks tomou novamente o pano para sua mão passando na face feminina enquanto ela suspirava frustrada — Nem adianta reclamar, seu estado está feio, se morrer vai ser ruim para minha fama.

Harumi riu com a fala do herói e quando pode finalmente abrir os olhos sem uma sensação de grudado incomodar, pode o ver sorrir de forma calma. O homem com as longas asas agora estava sentado ao seu lado, as penas repousando no asfalto enquanto esperavam que a ambulância chegasse.

— Eu só não te levo voando por ser perigoso — Comentou a observando sorrir.

— E eu pensando que conseguiria um passeio gratuito, uma pena — Riu sentindo a dor e algumas gotículas de sangue ser expelido enquanto tossia — Essa faca me pegou de jeito.

— Me impressiona estar falando depois da surra.

— Oh, isso não foi nada — Harumi falou com seu enorme sorriso enquanto o herói limpava os lábios cortados com cuidado — Ele tinha mãos de fada, pena que era pesado, não consegui levantar ele ferida haha.

— Você não parece nem um pouco que foi golpeada com uma faca — Hawks falou agora mais tranquilo enquanto o som da sirene de ambulância se tornava audível.

— Essa é a hora que eu vou para o hospital e você segue sua patrulha, herói — Mais uma risada enquanto o homem de asas carmesim se levantava dando espaço para que os socorristas se aproximassem da platinada — Foi um prazer te conhecer, Hawks.

— O prazer foi meu... — E com o silêncio esperou que a mulher respondesse seu nome, mas ela não falou nada por um longo tempo.

— Tragam o desfibrilador! Ela teve uma parada respiratória! — O socorrista gritou anunciando para sua equipe que veio às pressas socorrer enquanto o homem começava o procedimento de massagem cardíaca.

Doce como Café { Hawks }Onde histórias criam vida. Descubra agora