Vinte

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Ele

Quando chego em casa já passa das 2h.

Suspiro assim que adentro a sala, feliz por estar de volta e por minhas filhas e Isabela estarem em segurança aqui, e querendo loucamente esquecer o terror que foi essa noite. Já vi muita coisa horrível nesses anos sendo papiloscopista, mas não como hoje.

Hoje realmente se superou.

Guardo meus acessórios na gaveta da estante de livros e tiro os tênis, sentindo uma dor absurda no corpo inteiro. Parece que seguro nas costas todo o sofrimento dos parentes daquelas doze vítimas fatais, com idades entre seis a onze anos. E quem causou o acidente só teve alguns arranhões. O desgraçado que estava drogado e bêbado enquanto dirigia um bitrem com trinta metros e pesando cerca de setenta e três toneladas por estar carregado, só teve arranhões.

O culpado teve arranhões. E suas doze vítimas morreram na hora ou minutos depois, cobertas de machucados tanto por fora quanto por dentro.

Doze crianças; quatro delas arremessadas do ônibus por causa do impacto, duas presas nas ferragens e mais duas com hemorragia interna, três que tiveram alguma parte do corpo mutilada, e uma esmagada pelo ônibus depois de ter sido arremessada de dentro dele, sendo duas vítimas de todas essas com a idade da minha própria filha.

E o desgraçado que cheirou e encheu a cara antes de dirigir só teve leves escoriações. Puta que pariu!

Isso não é justo e jamais será.

Juro que nunca vou entender o porquê que esse tipo de coisa acontece. Nunca! Posso trabalhar como papiloscopista pelos próximos cinquenta anos e jamais vou entender.

–– Sebastian? –– E Isabela aparece à minha frente, parecendo bastante preocupada, com o cabelo solto e vestindo uma camisola branca que não esconde muito de seu corpo.

–– Oi –– respondo, cansado, mas vou até ela. A enlaço em meu corpo sem ter a intenção de soltá-la tão cedo. Como é bom sentir seu calor.

–– Você tá bem? –– pergunta, sua voz soa abafada por ela estar com o rosto grudado no meu peito. –– Sente fome?

–– Não –– digo suavemente e sentindo o estômago se revolver só de pensar em comida. –– Eu só queria esquecer as últimas horas, Bela, foi terrível. Foi uma das piores noites de toda a minha vida.

–– Sinto muito. –– E Isabela me aperta mais contra seu peito. –– Sinto muito mesmo, Bash.

–– Só vou tomar um banho e já me deito com você –– prometo, finalmente soltando-a.

Ela assente e se encaminha de volta para meu quarto, palco de um dos melhores finais de semana que já tive (graças a ela).

Antes de entrar no banheiro abro a porta do quarto das meninas e as observo dormir por alguns segundos. Realmente agradeço a Deus por não serem elas duas daquelas doze vítimas que eu, Aurora e mais três outros peritos tivemos de coletar material genético e impressões digitais horas antes.

Doze crianças morreram. Meu Deus. Como alguém que viu tudo o que vi nessa noite conseguiria simplesmente dormir em paz agora?

Sei que ainda não processei todo o acontecimento direito e que o choque emocional vai chegar com força qualquer hora, talvez pela manhã, se eu estiver com sorte. Não foi o primeiro acidente grave que presenciei, claro, mas foi um dos piores com certeza, assim como o acidente aéreo que tirou a vida do pai de Isabela, poucos anos antes.

Solto mais um suspiro, voltando a fechar a porta do quarto de Rebeca e de Gabriela, que dormem tranquilamente.

Procuro não me demorar no banho. Escovo os dentes, lavo o cabelo, massageio os ombros e alongo os braços debaixo da água morna, orando em silêncio pelas doze crianças que perderam a vida nesse acidente. Que todas elas encontrem paz.

#2 - Logo Após Você PartirOnde histórias criam vida. Descubra agora