Vinte e Nove

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Ela

–– Não posso comer frutos do mar –– Kali, uma das assistentes de dona Ísis, comenta enquanto corta um pedaço de frango. Seu cabelo escuro escorre feito petróleo pelas costas largas. –– Tenho alergia.

Isabela a encara.

–– Meu pai também tinha –– diz, relembrando do terror que foi quando ele comeu uma tortinha de camarão sem querer na festa de formatura de ensino médio dela. Por sorte, por toda a vida, ele andava com o antialérgico nos bolsos ou mochilas, e foi o que o salvou naquele momento. –– Às vezes eu queria diversificar as refeições em casa e ficava meio limitada. Aí focava nas saladas, que ele curtia demais desde sempre.

Estão as quatro – Isabela, Kali, dona Ísis e Minerva – almoçando juntas na ONG Ártemis. As duas assistentes lhe mostraram minutos antes, quando ela chegara do trabalho, tudo o que trouxeram da viagem: kits novos de panelas e utensílios, potes de armazenagem, canecas de porcelana, aventais e muito mais, além de a informar que estão divulgando que novas vagas para o curso de gastronomia foram abertas no sábado anterior e que quase todas já foram preenchidas.

–– Estou farta de salada. Ah, se eu pudesse me empanturrar com uma pizza bem recheada de queijo de vez em quando... –– dona Ísis diz, suspirando inconformada.

Minerva a olha de lado na mesa quadricular e lhe oferece um sorriso brincalhão.

–– A senhora adora salada.

–– Mas isso não quer dizer que eu queira comer sempre –– retruca a mais velha secamente, mirando com raiva a alface no seu prato.

Isabela até se inclina um pouco para trás quando ri. A mulher lhe lembrou Rebeca e Gabriela quando fazem birra, o que ocorre mais ou menos umas quatro vezes na semana. Sebastian expira fundo e encara o teto, como que pedindo ajuda para Deus quando Gabi chora copiosamente falando que não quer feijão e sim sorvete no jantar e Beca grita de forma impetuosa que os temperos do macarrão são nojentos e que vai vomitar.

–– O que mais a senhora gostaria de poder comer, se pudesse? –– questiona ela, sacudindo a cabeça de leve para desvanecer as lembranças das crianças que possuem seu coração. Uma pontada leve abaixo da barriga lhe avisa que sua menstruação deve descer nas próximas horas e ela se remexe um pouco na cadeira. Ainda bem que sempre tenho um pacote de absorvente na bolsa, pensa brevemente.

–– Um bolo enorme de chocolate –– responde dona Ísis sem hesitar.

–– A senhora pode comer um pouquinho, sim... bem pouquinho... –– E ela aproxima o polegar e o dedão até quase se tocarem para demonstrar o quanto.

Minerva e Kali riem alto.

–– É isso o que você não entendeu, Bela –– Minerva fala, enrolando a couve no garfo. –– Ela não quer comer só um pouquinho. Se a gente deixar, ela come sozinha um bolo inteiro.

–– É por isso que ficamos o tempo todo em cima dela –– Kali complementa, finalizando sua refeição. –– Ela parece criança de vez em quando.

–– Já me ofereci para fazer um bolo de chocolate especial para sua condição, mas ela não quer –– Minerva prossegue.

–– Ora, essa! Esse bolo que você quer fazer não tem graça nenhuma, Mimi –– reclama dona Ísis, num tom dramático. –– Na receita vai leite vegetal, pelo amor de Deus. –– Ela revira os olhos e balança a cabeça. O cabelo crespo mexe levemente com o movimento. –– Essas coisas que você come, francamente...

–– Não há nada de errado em encontrar outras alternativas para apoiar a causa animal, além de ser muito mais saudável –– rebate, estreitando os olhos protuberantes emoldurados com cílios postiços. Ela arregaça as mangas longas da camisa social até os cotovelos, revelando diversos desenhos com traços delicados fechando os dois braços, que Isabela observa, encantada. Tem de tudo um pouco: flores, personagens coloridos da cultura pop, borboletas, frases, planetas, estrelas, trechos de canções e até pequenos corações. Os traçados se ajustam de um jeito caótico em sua pele branca, mas todo o conjunto é vívido, lindo e chama a atenção. Por isso que ela sempre usa roupas com mangas na ONG.

#2 - Logo Após Você PartirOnde histórias criam vida. Descubra agora