A quebra

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- Ao que parece, vocês não sabem como funciona a filacteria de um lich - disse Lazarus entrando na sala.
- Ela é o receptáculo da alma do lich, se ele tiver seu corpo destruído, ele pode retornar a vida através dela -retrucou Zaila.
- Mais que isso, ela precisa estar alimentada regularmente com alma - respondeu o clérigo - caso contrário o lich não poderá retornar, aquele que detém a sua filactéria detêm controle sobre o lich, e Zigwurd servirá bem ao culto de Myrkul.
- Não me trate como idiota clérigo - respondeu Nikolai com a espada erguida - já faz séculos que Zigwurd foi derrotado, sua alma já se perdeu a muito tempo, pois a muito sua filactéria passa fome, não poderás trazê-lo de volta, mas meu Lorde possui interesse em estudar o artefato que conteve sua alma.
- Senhores, vocês homens tem interesses tão egoístas para tal objeto - disse Zaila de forma condescendente - as nornas possuem interesses mais louváveis para a filactéria.
- E quais seriam estes? - indagou Nikolai descrente.
- Não sei, elas nunca me falam - respondeu Zaila gargalhando com pesar - ah aquelas megeras, escravizariam o mundo todo com esse objeto.... Fortaleça - sussurrou ela na língua silvestre, o rajado rangeu retesando as fibras da madeira.
Nikolai percebeu em poucos instantes que se tratava de um feitiços a palavra que não entendera, mas não tivera tempo de reação suficiente quando o cajado acertou com força o seu queixo. Tendo sido pego de surpresa e sabendo que teria que enfrentar dois inimigos, proferiu palavras na língua dracônica, seu corpo começou a expelir uma fumaça gélida, e pelo braço que segurava a espada, uma camada de gelo começou a cobrir seu corpo para protegê-lo de outros ataques.
Lazarus aproveitou que o combate iniciou entre os dois e com seu símbolo de Myrkul, conjurou um campo cintilante de energia espectral ao seu redor pra protegê-lo, então partiu em um ataque com sua maça, mirando a mulher que acabara de atacar e teria menos tempo de reagir a ele, acertando ela no flanco reagindo com um grito de dor.
Zaila tentou reagir, com as palavras silvestres ela apontou seu cajado para o clérigo, lançando uma maldição sobre ele, Lazarus sentiu como se um espinho não físico o tivesse atingido, e em seguida Zaila tentou lhe acertar com o cajado também, porém foi refletida pelo escudo de energia espectral.
- Tola! - vociferou ele - a força de meu escudo é a força da minha fé!
Nikolai girou a espada no ar, lançando dela uma rajada mística de energia contra o clérigo, trespassado seu escudo conjurado e lhe acertando com força - Parece que meus poderes são maiores que sua fé.
Lazarus não respondeu, pois sentia-se muito ferido, agradecera a Myrkul por ter evocado seus poderes para lhe curar entre as duas batalha, ainda fraco, ele precisava recobrar as forças. Ele se afastou alguns passos e levando sua mão ao peito, conjurou em nome de seu deus cura para seu corpo ferido.
Zaila cansou de brincadeiras, e Nikolai presenciou seus olhos verdes se tornarem bestiais, quando a mulher se tornou um feroz lobo cinzento, com os pelos eriçados rosnava para ele, ele tentou atacar com um golpe de espada, mas a loba feroz se esquivou, olhando para o lado a cena aterradora daquele morto vivo enorme vindo para cima dele gritando com a pesada maça sangrenta, que passou zunindo perto do sua cabeça quando ele se esquivou por pouco.
Uma mordida certeira da loba acertou com força a coxa de um Nikolai distraído, porém os dentes perfuraram o gelo sem chegar a carne, gelo este que revidou de forma sobrenatural com um frígido golpe de estilhaços que regelaram a boca da loba. Nikolai tendo que lutar em duas frentes desferiu um certeiro golpe que causou tamanho dano somado a gelo que foi suficiente para fazer a fera voltar a ser mulher.
- Agora já chega! - gritou Lazarus - Myrkul! Senhor da morte! Abençoa esta arma com teu toque ceifador!
A maça de Lazarus começou a emitir uma energia negra, o ar ficava denso ao seu redor, e em um movimento que embasava o ar, desferiu um golpe contra Nikolai. Este impressionado com a força daquela criatura, sabia que sua armadura de gelo não seria o suficiente para protegê-lo daquele golpe mortal, girando sua espada em posição de aparo, conjurou com palavras dracônicas um escudo arcano que defletiu a maça necrótica, o impacto da arma no escudo de energia a jogou para trás, o arco que o pesado instrumento de morte descreveu no ar, levou diretamente até a filactéria sobre o altar.
O impacto da maça impregnada com poder de Myrkul, ao acertar a filactéria de ébano e ossos explodiu em luz verde maligna com um estrondo sonoro que deixou todos ali presentes ao chão desorientados com os ouvidos zunindo.
Lazarus despertou no chão, não sabia quanto tempo havia se passado, o chão estava rachado e cheio de destroços. Levantou-se com calma e olhou ao redor, a julgar pelo dobro da distância que estava o teto da sala, o piso havia ruído e caíram um nível nos andares da fortaleza. Subitamente uma lembrança invadiu sua cabeça, ele estava em um campo verdejante caminhando de mãos dadas com uma bela mulher, fazia um calor agradável, uma menina parecida com a mulher corria e brincava a frente deles enquanto sorria.
Zaila tentava se apoiar no cajado pra se levantar, sua cabeça doía e girava, colocando a mão sobre ela, notou que estava melada de sangue. Lazarus aturdido com aquela lembrança súbita quase não notou que o teto rachado continuava a ruir, uma pedra estava prestes a se desprender e cair naquela mulher que ele não conhecia, ela não veria o que atingiria ela, mas Lazarus decidiu na hora certa, quando a pedra estava caindo, um puxão em seu braço impediu que a rocha levasse ela de encontro a Myrkul.
- Porque fez isso? - indagou Zaila ainda com a cabeça girando - tentou me matar a cinco minutos atrás.
- Eu... Eu não sei, me pareceu certo..... Minha cabeça dói - respondeu Lazarus oscilando a voz.
Em parte Zaila entendia o que ele falava, mesmo que não fizesse sentido, pois ela mesma sentira que algo mudara nela, sentia sua mente livre, como não sentia a muito tempo, podia tomar suas próprias decisões. Olharam para o lado quando um movimento chamou a atenção de ambos, aquele guerreiro se levantava do chão e juntava sua espada do chão, Zaila e Lazarus levantaram suas armas em pronto emprego.
- Acalmem-se! Eu não quero feri-los - disse Nikolai, levantando as mãos em sinal de paz, mas então com uma súbita epifania, olhou para suas lâmina com curiosidade - eu tenho decisão sobre isso?... Sim, eu tenho - disse ele após um segundo com um sorriso de felicidade, e embainhou a espada.
Mesmo achando aquilo estranho, Zaila ouviu as paredes continuarem a ruir - temos que sair daqui antes que esse teto se torne nosso túmulo.
A sala onde caíram dava para um corredor, por onde as rachaduras começavam a avançar mais rápido do que eles próprios, Lazarus era grande e lento, e seus músculos velhos o impediam de correr muito rápido, porém para surpresa dele, os outros dois não o deixaram para trás, ambos poderiam ter saído mais rápido, mas fugiam no ritmo que ele conseguia. Logo com um grande ruído, o chão se abriu novamente abaixo deles, Lazarus mais atrás conseguiu se segurar nas partes mais estáveis do chão, Nikolai ficou a beira do precipício que se abriu abaixo dele, porém Zaila estava bem no local que ruíra, ela sentiu o chão sumir abaixo de seus pés e a vertigem da queda, o medo da morte se instalou quando começou a cair, mas sentiu um forte puxão no seu braço, quando olhou para cima viu que o estranho homem de olhos vermelhos a segurava pela mão. Nikolai vira que o caminho que seguiam já era inviável, porém o corredor abaixo ainda estava mais intacto.
- Prepare-se, vou arremessá-la - disse ele balançando a mulher como um pêndulo para pegar impulso, e com força a arremessou, Zaila caiu rolando, mas em segurança. Nikolai pegou o braço de Lazarus que de pendurou da mesma forma, o morto vivo era imensamente mais pesado, e Nikolai teve que fazer um esforço sobre-humano para repetir a façanha.
Quando Lazarus aterrissou, o chão cedeu sobre ele, pendurado novamente, segurando-se somente pelas mãos, Zaila ajudou-o a subir, Nikolai já vinha andando cautelosamente pela parede, e quando esta começou a ruir ele foi obrigado a pular, acabando por machucar a perna.
Zaila o apoiou no ombro e continuaram a fuga o mais rápido possível. Outro pedaço do teto caiu a poucos metros deles, e lá na frente outra fenda começou a se abrir enquanto a fortaleza desmoronava, da rachadura, dezenas de aranhas gigantes fugiam do subsolo e da morte iminente, uma delas veio na direção deles, e irritada desferiu um ataque contra Lazarus.
O clérigo que já havia equipado seu escudo quando viu o aracnídeo vindo em sua direção, defendeu as quelíceras da aranha erguendo sua defesa, e com sua maça desferiu um golpe que lançou um lampejo esverdeado venenoso, a aranha chiou ferida e decidiu que era melhor fugir por sua vida do que lutar com aberrações. Correndo corredores abaixo, vislumbraram a porta da frente ruindo, pedregulhos caíam sobre a entrada ameaçando fecha-la, correndo mais do que seus corpos feridos conseguiam, se lançaram como puderam por meio dos escombros para evitar a morte certa, sentindo o vento frio da noite, correram ponte de pedra a fora enquanto ela também ruía, olhando para trás, somente para ver o mausoléu tenebroso cair em uma pilha de pedras.

***

Armaram uma fogueira na floresta sombria para se aquecerem e cuidarem das feridas, Lazarus sussurrou uma oração, repetindo as palavras em língua celestial por cerca de dez minutos, ao passar desse tempo, as feridas dos três, Quando terminou, fez-se silêncio por um instante até que a druida perguntou.
- Como se chama clérigo? Me chamam de Zaila.
- Lazarus é meu nome - disse ele pensativo olhando para as chamas.
- Chamo-me Nikolai - disse o dampiro com uma leve mesura - se me permite dizer, você parece um tanto vivo para alguém morto.
- Porque não sou um morto-vivo normal, não sou uma casca vazia, meu corpo foi semi-restaurado e minha alma colocada de volta em meu próprio corpo - Lazarus fez uma pausa e depois falou com pesar - me disseram que em vida eu era servo de Myrkul, um assassino a sangue frio, mas agora tenho lembranças, memórias de uma vida muito diferente, eles mentiram para mim, eu tive família, mulher e filha, eu era uma pessoa simples e feliz.
- Bem, eu tenho pai e alguns "irmãos adotivos" - disse Nikolai - mas não era algo feliz, nunca nutri algo por nenhum deles além de ódio, não sei se vocês entenderiam. Parece que depois da quebra da filactéria, os encantamentos que meu pai colocou sobre mim se quebraram, estou livre, não voltarei nunca mais para as terras dele.
- Família... Acredite Nikolai, eu entendo bem o que quer dizer - disse Zaila - já tive uma que eu amava, não de sangue, mas meu círculo druidico. Fui arrancada dessa família e.... Bem, mexeram em minha mente para que eu os odiasse, aquelas megeras... Eu agora tenho uma "Vovó", "Titia" e "Mamãe", mas apunhalaria cada uma no coração se tivesse a chance. E querem saber de uma coisa, só agora falando essas palavras em voz alta, sinto a mesma liberdade que Nikolai mencionou, acho que a energia liberada da filactéria na explosão libertou minha vontade, a mente de Nikolai, e as memórias de Lazarus.
- É possível - comentou Nikolai - bem, eu não sei vocês, mas a algumas milhas daqui há um vilarejo, um dia de caminhada, ao amanhecer vou rumar para lá, e de lá verei o que farei daqui para frente, convido vocês, desgarrados como eu, a seguirem rumo comigo pela manhã. Mas agora eu sugiro que durmam
- Descansem - disse Lazarus sem mudar expressão - eu ficarei com o primeiro turno da vigia.

Continua...

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