CAPÍTULO 9

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Gabriel abriu a porta e o filho de Valiant e a humana, Sarah, entraram. Ele se sentou numa cadeira e indicou o sofá. O grande Nova Espécie o olhou com amabilidade no olhar e se sentou, a humana abriu a boca, mas preferiu pensar melhor no que dizer.
"Não precisa pensar muito, só fale. Eu já passei da época em que me importava com as coisas. Só que eu te direi a verdade, não importa qual seja." Ele disse. Nesses últimos anos muita gente ia ali. Gabriel sempre dizia a verdade, mas as vezes não era o que queriam saber. Ele não se importava.
"Eu sempre pensei que aqui era gelado. Mas está só um pouco frio, como o ar em meu quarto no verão." Noble disse. Gabriel o encarou e mais uma vez se maravilhou com o que ele era. O que havia de mais forte entre os Novas Espécies e o que havia de mais doce entre a humanidade. Tammy era uma das poucas humanas que ele respeitava. Havia um amor incondicional e infinito dentro dela. E ela eternizou esse amor em seus filhos  e agora nos netos.
"Cortesia do seu irmão." Ele explicou.
"Simple?" Gabriel sorriu de leve e negou com a cabeça. Ele sorriu.
"Honest." Gabriel aumentou o tamanho do sorriso.
"Candid? Sério?" Enquanto assentia com a cabeça Gabriel pensava que era exatamente isso que o pestinha do Candid queria que pensassem. Que ele era só um adolescente que gostava muito de prostitutas.
"Ele também é médico. E tem uma quedinha por processos corporais e mentais." Noble sorriu cheio de orgulho do irmão. O engraçado que o verdadeiro gênio da família, na opinião de Gabriel, era o próprio Noble. O que os trigêmeos faziam era apenas coletar e praticar conhecimento, a mente deles pedia por isso. Mas a sensibilidade musical de Noble, essa sim era rara.
"Você pode sair?" Ele perguntou.
"Não. Eu preciso de um ambiente controlado ainda. Mas posso abrir a janela as vezes. A noite, de madrugada, quando esse lugar é mais silencioso e está totalmente escuro." Noble assentiu, Sarah parecia ainda estar pensando no que ia dizer.
"Talvez eu possa ajudar?" Gabriel disse a ela.
"Você está aqui por causa de Sophia." Sophia. Será que um dia ele conseguiria pensar nela como pensava em todos os outros? Como apenas uma mulher comum?
Não. Com certeza não, começando pelo fato dela não ser uma mulher, ela era uma fêmea. E comum ela nunca seria.
"Sim, não só por isso, mas podemos começar por aí. Por que nunca disse para ela?" Gabriel olhou para ela, Sarah tinha amadurecido, mas para ele, o fato dela ser humana, frágil, limitada e pequena a tornava muito desinteressante.
"Por que eu demorei muitos anos para descobrir e quando encaixei todas as peças do quebra cabeça, eu já era isso que eu sou agora. Essa informação não me ajuda em nada." Noble acenou. Ele convivia com Simple que tinha essa mesma filosofia.
"Como assim? Como você pode ter uma informação dessas e não contar para ela? Ela quase morreu no parto dos gêmeos! Talvez se ela..." Ela se levantou.
"Foram as minhas drogas que a salvaram nos dois partos." Ele disse entediado.
Gabriel salvou a vida de Sophia mais de uma vez, mas Sarah queria brigar, ele não ligava a mínima desde que ela não gritasse.
"Mas..." Noble a puxou pela mão, ela se sentou de novo.
"Você sabe como ela foi parar com o pai dela? Como foi que a mãe dela engravidou? Ela seria de terceira geração?" Ela começou com as perguntas e ainda parecia ter muitas, então, Gabriel ergueu a mão.
"Vistam os casacos. Eu não posso ficar longe do frio por tanto tempo e a história é longa." A humana correu para onde estavam os ganchos e vestiu um grosso casaco forrado de pele. Noble apenas pegou outro casaco, mas não vestiu. Gabriel desligou o ar condicionado e ligou o outro, o refrigerador.
O frio o envolveu com seus braços gelados e ele suspirou. Era bom.
"A história de Sophia começa com a guerra dos cientistas na Mercille." Sarah ergueu a mão como se estivesse numa sala de aula. Noble sorriu, ele devia ter pensado algo nessa linha. Gabriel só esperou, uma das coisas que o impediram de lecionar, foi justamente os alunos.
"Guerra?" Gabriel suspirou.
"Mercille criou os Novas Espécies e dedicou algumas décadas só os reproduzindo. Quando eles estavam satisfeitos com o total que tinham, vieram as experiências. Eles precisavam do retorno do dinheiro. Mas ao invés de programas de incentivo, eles promoveram uma guerra nas entrelinhas, onde os cientistas eram constantemente jogados uns contra os outros. Eles eram muito bons e Mercille ficou com medo de vazamentos, essa "guerra" impediu que se juntassem contra a própria empresa. Foi mais uma guerra de egos."
"Entendi." Ela disse, Gabriel tinha suas dúvidas, mas continuou.
"Então cada um começou a fazer experiências, o pai adotivo de Grace, Karl Brennan por exemplo, tentou desenvolver inteligência nos Novas Espécies que eram como Silent. Eles eram os mais fortes, mas não sabiam nem falar. Não deu muito certo para ele." Noble assentiu.
"Meu pai pegou Vengeance e o levou para nossa casa. Vocês sabem no que deu." Foi a vez da humana assentir.
"E no meio desses cientistas, nesse contexto de falsa camaradagem e experiências a parte, nós temos Dalton Grives. Um cientista do último escalão, negro, que era muito bom no que fazia, mas tinha uma visão um tanto quanto fria da existência dos Novas Espécies. Para ele, eles deveriam ser armas. Não soldados como alguns defendiam, armas." Gabriel olhou para a janela, a sua preferida, a que dava para a casa de Brass.
"As Novas Espécies que eles conseguiram, Felinos, Caninos e os primatas inúteis, não poderiam ser armas, não a primeira geração no caso, eles não se dobraram, e vários técnicos estavam mortos para provar isso, então, ele dedicou um tempo numa outra espécie. Ele criou as fórmulas, algumas viáveis outras não, e mostrou para a diretoria. Eles se negaram a permitir que ele continuasse daí. A cor da pele dele deve ter ajudado a não lhe darem uma chance. Ele foi até os cientistas, nenhum se interessou, Dalton era muito inteligente, mas para os outros, ele era pouco mais que um técnico." Gabriel pensou no quanto o preconceito impedia a humanidade de progredir. Numa outra vida, onde ele, mais jovem, claro, conhecesse Sophia, tivesse se apaixonado, e a levasse para seu pai conhecer, ele seria energicamente convencido a largá-la. Ainda que ela fosse a mulher mais bonita que ele já viu. Ele pensava muito nisso esses dias. O que teria acontecido se tivesse encontrado Sophia em outro contexto? Talvez ele não tivesse se tornando o que se tornou.
Ou, se não tivesse a conhecido? Nunca? Ele estaria ali? Os olhos de Sarah estavam atentos, ele continuou:
"Grives então fez o que todos estavam fazendo, desenvolvendo seus experimentos a parte, nas instalações, mas sem informar os resultados. Eram muitas instalações e haviam os cientistas chefes e os assistentes, isso possibilitava manipular os relatórios e não reportar aos cientistas chefes o que realmente as experiências eram.
Ele era apaixonado por ofídios, achava que eles eram os melhores predadores do mundo, não é verdade, pelo menos não no geral, mas o fato de produzirem veneno os coloca vários degraus acima na cadeia alimentar." Gabriel suspirou. Os seres humanos sempre estudaram o veneno, haviam ínfimas plantas e animais que tinham essa particularidade. E as substâncias venenosas e as combinações venenosas. Tudo em prol do poder, tudo em prol da destruição de seus semelhantes.
"Grives tinha um desafio em mãos, pois os Novas Espécies proviam de animais mamíferos como os humanos. Alguns Ofídios eram vivíparos e nisso estava sua tese de que era possível misturar seus genes com os dos humanos. Bom, ele conseguiu. Usou seu próprio sêmen, ele não podia deixar que descobrissem e sua irmã foi a barriga de aluguel. Eu não sei se ele conseguiu de primeira, mas a experiência acabou tendo sucesso e ele produziu  Bells. Ele o levou para a instalação, mas houve um remanejamento e Bells foi para outra, uma onde faziam testes de reprodução. Ele tentou ser transferido para lá, mas demorou muito para conseguir, quando conseguiu, Bells já estava sendo submetido a várias experiências dolorosas e degradantes, isso o transformou num autômato que fazia o que mandavam. Grives se conformou a anotar os resultados. Ele se arrependia de ter levado Bells para a instalação. Ele o perdeu." Gabriel gostava muito de Bells. Ele era puro. Era uma ironia do destino que logo ele achou o mais perfeito clone humano de que se tinha notícias. Jewel era uma conquista científica, mas graças a Bells, ela estava crescendo como uma menina comum, em meio a muito amor. Gabriel não criava expectativas, mas o que Jewel se tornaria quando crescesse era uma das coisas que ele queria ver.
"Quer água?" Noble perguntou. Ele pensou que falar tanto poderia secar a garganta de Gabriel? Era engraçado.
"Eu não bebo água. Não hoje, pelo menos." Sarah franziu a testa.
"Continuando. Grives continuou sua pesquisa, ele estava resolvido a criar uma fêmea. Depois de um bom tempo ele conseguiu um embrião viável, mas sua irmã não quis servir de barriga de aluguel de novo. Ela tinha acreditado que o bebê era dela, que seu irmão tinha tirado seu filho dos braços dela. Humanos!"
Sarah balançou a cabeça.
"Eu me sentiria igual. Eu viraria a cidade de ponta cabeça procurando." Gabriel nem se deu ao trabalho de comentar.
"Dessa vez, ele contratou uma mulher aleatória. Ele desviou um fundo da instalação, fez o acordo com ela e a inseminou. Mas essa mulher era casada. Com um trapaceiro que vivia pelo país cantando e aplicando golpes." Sarah sorriu.
"John Winters." Gabriel acenou.
"Eles fugiram de Grives, John era estéril ou ela era, não sei, mas fugiram. Mas a mulher morreu no parto. John quase deixou Sophia para adoção, mas antes que ele saísse de fininho do hospital, ele viu a linguinha dela, estranha, comprida. Decidiu que talvez pudesse mostrá-la num circo, talvez conseguisse algum dinheiro."
"E mamãe o idolatrou durante todo esse tempo!" Noble beijou a mão dela, como se pedisse calma. Ele ainda não tinha vestido o casaco.
"Ela cresceu rápido como os Novas Espécies faziam, ele notou que havia algo muito estranho nela. Quando fez um ano, ela tinha presas enormes, finas como as de Bells e uma língua grande e esquisita. Eles foram numa cidade onde um dos cientistas de Mercille vivia. Um dos melhores deles."
"Bishop?" Noble perguntou, Sarah se virou para ele quando Gabriel assentiu com a cabeça.
"Os trigêmeos sempre dizem que ele era o melhor." Noble explicou, Gabriel acenou.
"Bishop o convenceu a deixá-lo dar um jeito na boca dela, ele arrancou as presas, cortou um pedaço da língua dela e cortou os lábios, para que ela parecesse ter lábio leporino."
"Por que ele fez isso?" Uma lágrima rolou na face de Sarah. Gabriel ignorou isso.
"John pediu. Ele queria que ela tivesse alguma deficiência para que pudesse explorar. Bishop, num raro momento de empatia, mutilou algo que poderia ser arrumado depois. E ele foi embora, Bishop não viu muita capacidade em Sophia, ela era bonita, forte, alta para a idade, mas não tinha muita utilidade para ele."
"Ela não tem veneno?" Noble perguntou.
"Não. Tanto ela quanto Bells ou Brave não produzem veneno. Mas eles o metabolizam. Bells não foi submetido a veneno nas instalações, mas ele deve ter sido picado em algum momento aqui mesmo na Reserva. Há muitos casos entre os da Zona Selvagem. Não deve ter sido uma cobra muito venenosa, mas desde então ele pode matar uma pessoa se a morder. Michelle esteve muito perto da morte. Brave, bom, você talvez possa saber de algo." Sarah balançou a cabeça.
"Ele nunca foi picado que eu saiba." Gabriel acenou.
"Talvez então, Sophia foi em algum momento e ele herdou isso dela. Não é letal pelo que eu acho. Ser um descendente de um canino com uma ofídica pode ter mudado a composição genética dele. Mas ele deve ficar longe de qualquer veneno, ou das composições deste. Se for administrado nele algo do tipo, ele se tornará algo nunca visto. Incrível, mas..."
Letal. De tipo que mataria pelo toque, se quisesse. Ele seria a arma que Grives sonhou produzir.
"Então, mamãe é isso? Ofídica?" Ela perguntou.
"Ela não é sua mãe." Gabriel se surpreendeu com essa demonstração de ciúmes. Depois de tanto tempo ainda havia uma parte dele que ainda amava Sophia. Ele só ignorava o tamanho desta parte.
"Ela é minha mãe!" Sarah se levantou e Gabriel sentiu um certo cansaço. Estava cada vez mais difícil aturar humanos.
"Que seja. Sophia reagiu muito bem aos anticoncepcionais, as drogas de regeneração e se vinculou a Brass, assim como ele se vínculou a ela. Eles são um casal interespécie de sucesso. Duas gestações, uma simples, onde o gene dominante foi o canino, e na outra, uma gestação dupla, onde cada um dos indivíduos tem um gene dominante. Isso é incrível. Como ela sempre foi. Acho que eu disse tudo." Gabriel sabia que Sarah tinha perguntas. Elas sempre tinham.
"Como descobriu tudo isso?" Ele a encarou. Mas deu de ombros.
"Grives me contou. Antes que eu o matasse. Papai era um monstro, mas ele via o valor de cada um pelas suas capacidades e realizações, não pela cor da pele, então, ele sempre teve contato com Grives. Pode se dizer que eles eram amigos, se monstros pudessem ter amigos, claro."
"Mas Grives não foi atrás de John? Ele não se importou com ela?"
"Ele foi, mas o encontrou quando Sophia já era uma menina grandinha. Não havia nada nela que ele pudesse usar, então, ele deu um dinheiro para que John consertasse os lábios dela. É claro que John não fez isso." Gabriel custou a entender o por quê de Sophia ter dado a John o nome daquele lixo humano. Tinha a ver com perdão, algo que ele não conhecia, nem tinha vontade de conhecer.
"Obrigada. Você deve estar louco para irmos embora." Sarah se levantou e Noble também.
"Não quer falar sobre Bronzy?" Gabriel perguntou.

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