Transparência absoluta

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N.A: Oiinn

Jane

O retrato da Mrs. Wheeler que eu encontrara na casa do Mike, durante os dias que estive lá, é tudo em que consigo focar desde o início da manhã.
Me reviro na cama, incomodada pela persistência disso logo no começo do dia, levando o meu sono para algum lugar distante. Bufo, irritada por perdê-lo sem sequer ter a chance de uma reivindicação, porque sabia como andava precisando descansar.
Não sei com exatidão o porquê desse pensamento fixo tão inesperadamente, mas é ele que me obriga a adiar o treino de hoje. Envio uma mensagem para o meu irmão, pedindo que ele assumisse a aula com os recrutas de nível 2. Desde que retornei para a Base, que lecionar tem sido a minha maior tarefa. Eu pensava que após retornar de uma missão executada com sucesso, enfim seria integrada à tão sonhada equipe da Patrulha ou quem sabe subiria de patente, mas não; repassar aos outros o meu mediano conhecimento, era o que tinham programado para mim.
Fala sério, eu tinha apenas dezoito anos e sete meses, o quê de tão grandioso poderia passar para os futuros defensores da cidade? Tudo bem, sou consciente de que estou em destaque na minha profissão há um bom tempo, talvez desde o início na adolescência, mas ser boa, falando em aptidão física, não significava que eu estava pronta para doar horas do meu dia, todos os dias, para exclusivamente ensinar aos garotos como se defender (ou atacar) de acordo com as situações a que fossem apresentados.
Sei que Will provavelmente tinha outro planos para hoje, mas eu não estava me aproveitando dele de modo libidinoso; e talvez não custe reforçar que ele me deve uma por encobri-lo na noite em que saíra, há quatro dias atrás.
Meu irmão não era muito de festas, por isso foi uma grande surpresa quando ele disse-me que iria a uma boate, ainda por cima sozinho e provavelmente só estaria de volta pela madrugada. Veio até mesmo com o papo de precisar botar a masculinidade em dia, só para tentar me convencer de que não estava sendo coagido a fazer isso. Sim, eu chegara a pensar mil e uma coisas acerca desse seu súbito interesse por diversão noturna, inclusive que algum criminoso estava o subordinando a ir encontrá-lo nesse local, mas ele me assegurou que não se tratava de nada disso.
Entretanto, eu ainda achava que havia algo errado com as suas informações.
Quando eu digo que William Byers não era de festa, significava que, tanto quanto eu, ele possuía uma quase aversão à todas essas festividades que a grande maioria dos jovens da nossa idade adoravam comparecer.
Vê-lo ansiando por virar a noite numa boate desconhecida era, no mínimo do mínimo, estranho.

Coincidentemente, me aproximo do estabelecimento no mesmo instante que ela está chegando para abri-lo, com uma garota de cabelos ruivos a acompanhando.
Eu a tinha visto no dia em que viera com Barb, ela era a nova ajudante na cafeteria.
Mrs. Wheeler parece surpresa em me ver ali a aquelas horas, se dirigindo até mim quase que de imediato, com seu costumeiro sorriso simpático.
Algo naquele sorriso faz com que eu estatele. Ele é tão fortemente familiar que por um momento penso que estou apenas imaginando coisas. O rosto de Alice Amberger, a irmã (com nome falso) do Mike, me veio à mente em um flash.
Continuo ali, parada, mesmo depois dela ter se aproximado, e a garota de cabelos rubros já ter adentrado pela porta de vidro principal.
- Não quer entrar, querida? eu posso adiantar o seu pedido se estiver atrasada. - propõe, gentil.
Faço um gesto negativo com a cabeça.
- Hoje eu não vim para fazer lanches. - tento sorrir, mas o máximo que consigo é um retorcer de lábios - a senhora teria um minuto?
A mulher concorda, se virando para dirigir-se à garota atrás do balcão que nos observa.
- Heather, você assume por uns instantes, por gentileza?
- Claro, mrs. Wheeler, não se preocupe.
- Ótimo, obrigada. - Karen agradece com um sorriso, então enlaça o braço no meu - Venha comigo, querida.
Sigo-a para um banco de madeira a alguns metros da entrada do estabelecimento, quase na esquina, e nos sentamos uma ao lado da outra. De onde estamos, é possível avistar o prédio principal da Base, que contém quatro andares; o penúltimo é o único desativado por ser o ponto onde está localizada a fenda.
Karen Wheeler parece curiosa em saber o que tenho para falar a essas horas da manhã, mas procura disfarçar o seu entusiasmo ao perguntar:
- Onde está aquela sua amiga que veio da outra vez?
- A Barb?
- Sim. - ela sorri - É uma garota muito agradável, assim como você. Gostei bastante de conhecê-la.
Sorrio.
- É verdade, ela é uma ótima pessoa.
- Mas diga-me: sobre o que quer falar?
- Eu queria lhe fazer umas perguntas um tanto pessoais, à caráter de uma investigação que estou fazendo, pode ser?
 Karen anui.
- Fiquei sabendo sobre o Mike. - diz, me lançando um meio sorriso quando gira a cabeça em minha direção para dirigir-me a palavra - Estive preocupada com você, Jane. Há muitos comentários sobre esse garoto, pouquíssimos deles são bons.
Inclino a cabeça para o lado, de leve, recebendo uma lufada quente de ar que passava por ali.
- Foi uma missão quase impossível. - sou sincera - Não saiu exatamente como o planejado no final, mas pelo menos ele está onde deveria.
Ela sorri para mim, contudo seu sorriso não atinge os olhos; em seguida, desvia-os dos meus, olhando para o outro lado.
- O que há? - pergunto, notando o seu desconforto.
- Nada - Karen tenta espairecer, suas íris inquietas parecem estar bem além disso - É só que, bom, eu sei que existem muitas pessoas com o mesmo nome, e Michael é bastante comum de se encontrar - interrompe a si mesma, inspirando fundo enquanto traz os olhos com dificuldade aos meus - meu filho também se chamava assim e eu não posso negar que lembro dele toda vez que ouço falar nesse rapaz.
Aprumo a postura, procurando evitar que aquela declaração deixara os meus nervos um tanto abalados, seguindo para a próxima pergunta que preciso fazer:
- E a garota? Como se chamava?
- Nancy. - a mulher sorri com a lembrança da filha - Ela se parecia muito com a minha mãe, principalmente em ser tagarela. Perdi as contas de quantas vezes ela me acordara no meio da noite para contar de alguma coisa que lhe chamara a atenção durante o dia. Era uma menina muito inteligente.
Sorrio de lado, em um gesto de reconforto. Há tantas interrogações se acumulando no fundo da minha consciência, que quase posso vê-las à minha volta como acontece nos desenhos animados.
- Já o Michael, bom, eu não sei a quem exatamente aquele garoto puxou. - dá uma risada rápida, fungando em seguida - Mesmo com pouca idade, ele tinha instintos aguçados, principalmente a visão. Não havia coisa, ou criatura nesse mundo, que escapasse da sua análise.
Sinto meu estômago revirar numa superfície gelada. As íris escuras de Mike me vem à mente, fixas e intensas, observando cada reação minha. Se tinha uma palavra para defini-lo seria "observador". Seus olhos capturavam tudo ao seu redor numa batida de coração, lhe dando quaisquer informações que precisasse saber. 
Lembro de uma vez ter sentido a minha alma ser desnuda perante o seu olhar penetrante. Na verdade, não só uma vez.
 Santo Deus do universo, as coisas andavam se encaixando tão bem...
- E sempre pensava nos outros antes de si mesmo, fosse em algum jogo ou na escola. - completa a Wheeler, desviando os olhos para baixo.
- Karen, você… - eu faço uma pausa para selecionar as palavras. Há muita coisa se passando em minha mente agora, e não posso transparece-las se quero fazer isso direito. - tem certeza de que viu os seus filhos... mortos?
- Sim. Absoluta.
Aquela resposta não me convence. Não pela maneira como me é dada. Eu não acreditava que tudo que ouvira até então, somado aos detalhes que me vieram à mente durante o processo, não se passava de uma grandíssima coincidência.
- Não há um modo, uma chance, de haver um equívoco? - eu quero saber, mas percebo não ter soado clara, então continuo - tipo, de seus filhos terem sido raptados, e os corpos no caixão pertencerem à outras pessoas?
Imagino como deve ser confusa a minha linha de raciocínio perante a sua visão, mas não posso desistir de tentar dar sentido aos meus pensamentos. Eu não só quero, como preciso entender como tudo aquilo no que venho pensando poderia ter, nem que fosse uma ínfima possibilidade, coerência.
A mulher ao meu lado balança a cabeça negativamente, firme na informação a mim passada.
- Já vai fazer quinze anos desde que os perdi. - ressalta - Eles estavam ali, Jane, inertes bem diante dos meus olhos e de todos.
- Todos? - friso, tentando não soar tão persuasiva, mas sabendo que não iria conseguir muito.
Karen solta um suspiro carregado de emoção, e posso ver seus olhos avermelharem-se, indicando o choro próximo. Era perceptível que, por mais que estivesse se tratando com um especialista há anos, esse assunto ainda deixava-a aturdida.
- Sim, os parentes e alguns amigos mais próximos da família. Inicialmente era para ter sido uma cerimônia aberta à população, mas o general do exército em pessoa conversara comigo e com o meu ex-marido para restringir o público. Hawkins é uma cidade pequena, e na época era ainda menor, então todo mundo ficou sabendo rapidamente da tragédia. - o canto dos seus lábios se ergue minimamente num esboço de sorriso triste - Recebemos flores pelo resto do ano por parte das Forças Armadas, e alguns outros moradores sensibilizados.
Minhas sobrancelhas vão de encontro uma à outra. Não era comum que os militares estivessem envolvidos no sepultamento de duas crianças de uma família da Periferia, ainda mais numa ocasião que deveria dizer respeito apenas à família enlutada.
- O general pediu que fosse uma cerimônia restrita? - pergunto - Por quê?
Seus ombros, escondidos por uma jaqueta jeans azul, se encolhem de leve.
- Eu não sei exatamente a resposta para isso, querida, nem estava em condições de pensar sobre na época.
Ela põe uma mão no ombro, afagando o local enquanto diz:
- Eu tenho muito o que agradecer ao seu pai pela benevolência que ele teve para conosco, nesse momento.
Meu pai?
Os olhos castanho-esverdeados da mini-empresária varrem o meu rosto, e parecem surpresos com a confusão que encontra ali.
- Ele não te contou?
- Acho que não.
Os olhos de Mrs. Wheeler se enchem de admiração quando explica:
- O dinheiro que o meu marido estava recebendo na época não dava para cobrir os custos do velório, e eu estava desempregada. A notícia da tragédia, somada à possibilidade de não conseguir enterrá-los por causa das débeis condições financeiras, me levou ao hospital por um dia inteiro. Foi aí que o dr. Brenner apareceu. - conta ela -  Ele financiou todo o sepultamento.
Me inclino automaticamente para trás. "Perplexidade" talvez não fosse uma palavra forte o suficiente para definir-me naquele instante.
- Eu não sabia de nada disso. - eu admito, com a voz estrangulada de alguém que acabou de levar um soco no estômago.
Figurativamente, eu havia levado sim. Estava me sentindo cada vez mais distante do papai, como se o homem fosse uma outra versão do que algumas pessoas estavam acostumadas a ver, e isso me inquieta.
Eu não gosto de pessoas com diversas e discrepantes personalidades, porque eu nunca sei em qual delas acreditar; e julgo impossível ser em todas.
- Eu tenho que ir. - anuncio, me levantando.
A velocidade com que o faço me desestabiliza, e bambeio um pouco antes de conseguir retomar a postura. Karen dá um impulso para frente, alcançando o meu ombro.
- Você está se sentindo bem? - questiona com preocupação.
Reproduzo qualquer gesto que se aproxime de concordância e murmuro algo em despedida. Eu não poderia permanecer aqui e enfrentar as dezenas de perguntas que ela poderia levantar.
 Cruzo a rua aos tropeços, de fato atônita com toda aquela enxurrada de novidades que meus neurônios suam para interpretar. Fugir das coisas nunca me foi uma alternativa, mas ultimamente não tenho agido como sempre agi.
Francis, um dos soldados da Patrulha me toca no ombro assim que piso na calçada frontal da Base, atraindo a minha atenção.
- Jane, está na nossa hora. - avisa.
Pisco lentamente, retornando de um transe. Por um momento, eu não lembrava que tinha sido convidada à testar a vida de um soldado da Patrulha.
- Há um uniforme extra no carro, não se preocupe. - ele acrescenta, lançando um olhar rápido para minhas roupas usuais de uma militar em serviço interno.
Assinto para ele após alguns segundos de recuperação, tomando a maior respiração que meus pulmões são capazes de abrigar, e o sigo para o Jeep adaptado que nos aguarda no final da rua.
Olho para trás mais uma vez, na direção da cafeteria, e a imagem dos olhos angustiados de Karen cortam os meus pensamentos. Ela não fazia ideia de que o seu filho estava vivo, apenas há alguns quilômetros de distância do seu alcance, e parar para pensar nisso, para analisar a profundidade de todo o contexto, fazia com que eu me sentisse inepta.
Ao contrário de mim, Mike tinha uma mãe. E ao contrário de mim, ele tinha uma pequena, mas real chance de reencontrá-la ao menos uma última vez.
Porque eu poderia ser capaz de omitir muitas coisas, mas essa não era uma delas.

Mileven: Two WorldsOnde histórias criam vida. Descubra agora