Inteira

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Jane

- Eu… - nós falamos ao mesmo tempo, e então fechamos a boca.
Mike me passa a palavra com um gesto de mão, e não sei se estou agradecida, já que se não fosse por meu impulso, ele teria tomado as rédeas do diálogo. Aposto que saberia o que dizer muito melhor do que eu.
Seu olhar enérgico, estudando as minhas reações, faz com que eu me sinta inquieta, contudo não é de todo ruim; a inquietação provém da vontade de correspondê-lo, devolver e segurar o seu olhar, porém sei que se escolher seguir esse caminho, não terei forças para dizer-lhe tudo que precisa ser dito.
Há cerca de dezessete minutos estamos aqui, sentados um de frente para o outro. Encontrá-lo no meu banheiro estava longe de qualquer pensamento que eu tive até então, principalmente porque não fazia ideia de que havia uma porta nos fundos do cômodo. Analisei-a diversas vezes até acreditar no que ele falava, pois meu primeiro pensamento ao ver o Mike ali, de pé à minha frente, foi que ele tinha se teletransportado  ao meu banheiro.
Eu sei, pode ter sido idiota da minha parte, mas como diabos eu iria imaginar que havia realmente uma ligação entre um depósito e o meu quarto? Não existia uma marca de maçaneta ou algo que me levasse a estudar aquela parede antes; o papel de parede marrom escuro também viera a calhar na omissão do detalhe, criando uma ilusão de ótica que me enganou por anos.
Mike está usando a camisa amarela de botão que o ajudei a vestir horas atrás, com o tronco encostado contra a minha banheira, enquanto eu me resumi a encolher o corpo contra os joelhos dobrados.
- Eu descobri. - é o que sou capaz de confessar primeiramente, notando a presença de um calafrio incômodo na base do pescoço.
Falar sobre aquele assunto faz com que as cenas que eu assisti rebobinem pela minha mente. Os gritos das pessoas, especialmente as crianças, enquanto os cientistas testavam o limite de suas capacidades físicas e cognitivas naquelas experiências inumanas, indo e vindo como um boomerang.
O garoto perante mim permanece em silêncio por um conjunto de segundos, processando o que havia sido dito. Era perceptível como aquelas novidades tinham me pego desprevenida, e do estrago que elas fizeram (e continuavam fazendo) à mim.
- Quanto tempo faz que isso aconteceu?
 Minha voz não passa de um sussurro quando respondo:
- Pouco mais de um dia.
- Você nunca parou para pensar que poderiam estar te escondendo alguma coisa? - é o que pergunta, analisando-me com seus olhos tipicamente intensos.
- Eu...estou tão confusa, tão irritada... - admito, fechando os olhos para evitar que lágrimas raivosas se derramem - É verdade que às vezes eu ficava um pouco desconfiada, mas nunca tinha muito tempo para pensar sobre mim mesma, sobre a minha história. Estava sempre atolada de treinos, de trabalhos, e completamente cega para conseguir um lugar junto à Patrulha.
- E você conseguiu?
- Não. - a palavra sai amarga - Eles nunca me deram uma real oportunidade. Mesmo depois de tudo que fiz com você, depois de tê-lo arrastado para esta merda outra vez, eles não me aceitaram. - encolho os ombros, quase inconscientemente, enquanto falo - Talvez não acham que eu seja boa o suficiente para assumir esse cargo.
- Ou talvez seja o contrário - Mike supõe, deixando claro o que pensa - Você é boa demais para a função.
Junto as sobrancelhas.
- O que quer dizer com isso?
- Que, desde sempre, o Martin investe alto em você. - esclarece - Viu que ele sempre estava te olhando como se tivesse descoberto uma mina de ouro? como se depositasse todas as expectativas do futuro em você?
Me encolho perante a lembrança. Por muitas vezes durante as filmagens, notei o modo como Martin Brenner me encarava. Não era amor o que estava expresso ali, muito menos admiração. Aquele era um olhar ávido, ganancioso, de quem estava longe de nutrir algum tipo de sentimento paterno. Sua relação comigo era restritamente lucrativa; contanto que eu o obedecesse e fizesse o que ele mandava, as coisas fluíam bem. Caso contrário... 
Estreito os olhos, meus pensamentos estavam todos embaralhados a essa altura.
- Como é possível só eu ter esquecido de tudo, se eles também injetavam aquelas substâncias em você?
- Eu não lembrava de boa parte delas até que nos reencontramos no Recanto dos Unicórnios. - Mike denota, vagueando o olhar pela minha mão enfaixada - A partir dali, uma vez ou outra alguma lembrança com você ressurgia. No começo, eu pensei que eram apenas sonhos, nada de concreto, mas a grande sensação de que te conhecia antes daquele dia, me fez ir descartando essa suposição aos poucos.
- Por que eu não sou capaz de lembrar assim? Tem alguma coisa de errado comigo? - me preocupo, olhando para os meus pulsos como se de repente tivesse deixado algum resquício de mudança passar batido.
- Titânio líquido. - responde, com o queixo amplo levemente erguido em seriedade - Você tomou um bocado, não foi?
Assinto. Os meus olhos crescem à medida que a compreensão vai se fazendo presente e sinto como se meu estômago estivesse afundando cada vez mais. 
- O Lucas, a quem você conheceu como Joseph, tem a habilidade de ler mentes. - ele assume, retomando o assunto anterior, e perscruta o meu semblante em busca de alguma reação que indicasse que eu já sabia disso.
Todavia eu não fazia a mínima ideia desse detalhe, antes de assistir às filmagens.
- No dia que te levei pra minha casa, porque você estava ferida, ele esteve lá. Uma das primeiras coisas que o Lucas fez foi tentar ler a sua mente, para saber se podíamos confiar em você, se havia perigo, mas ele não conseguiu.
- Não? - a cada nova informação recebida, fica claro que estou dando um passo a mais em direção à combustão psicológica. - Então como você já sabia que eu era uma militar?
- Depois que ele disse isso, sobre ser praticamente impossível transpassar a barreira dentro de você, eu fiquei desconfiado, por mais que tenha buscado não demonstrá-lo, nem aos demais, que realmente poderia haver algo desconfiável sobre você. - oscila a cabeça, suspendendo as sobrancelhas grossas quando acrescenta - Segundo Lucas, sua mente está bloqueada, e não só para ele, mas para todos nós.
Então era para aquilo que papa fazia tanta questão que eu estivesse ingerindo titânio entre determinados intervalos de tempo? Para que eu esquecesse as coisas, e assim não corressem o risco que eu caísse na real e acabasse me voltando contra eles? Era isso? O tempo todo eu não havia passado de um experimento para o meu próprio pai?
Minha cabeça está girando novamente, e tenho que segurá-la com as mãos ou não tenho certeza de que meu pescoço aguentaria o seu peso. 
Eu nunca estive tão vulnerável antes, especialmente na frente de alguém, mas de todas as coisas a se pensar, essa é uma das que menos me preocupa no momento. Se o Will estivesse aqui, eu sem dúvidas já teria lhe pedido para ir buscar uma dose de LV-3, sim, aquela substância ainda em fase de estudo que eu tinha subordinando o Steve a me trazer uma vez, e que era a única coisa no mundo capaz de me fazer melhorar da dor.

Mileven: Two WorldsOnde histórias criam vida. Descubra agora