A verdade sob um olhar

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Mike

 No momento em que vejo El saindo do quarto, sei que finalmente estou encarando sua face até então desconhecida.

 É a primeira vez que vejo seu verdadeiro eu, sua personalidade supostamente perdida, a pessoa que tem tentado esconder de todos nós. Os olhos estão vermelhos, inchados, e ainda há rastros de lágrimas nas bochechas.

 Ela está armada há alguns dias - é, eu sei disso - assim como sei que, neste exato momento, seus sentimentos se localizam muito próximos do ódio. Dou um passo para trás à medida em que ela se aproxima, rígida e silenciosa.

 A ausência de sons me deixa agoniado, trazendo algo que há um bom tempo não se sobressai entre minhas emoções: medo.

 Estou com medo dela. Medo da sua reação, do seu olhar, do que ela pode estar pensando de mim. Está cega de dor pela perda do amigo.

 Eu não conhecia a relação dos dois, mas pela forma como me olha agora, sei que era alguém bastante especial para si.

- Eu sei quem você é - declara subitamente, a voz baixa como se estivesse buscando se impedir de perder a razão.

 Não ergo a cabeça para encará-la, minhas costas tensionando. Era óbvio que esse dia iria chegar.

- E eu sei quem você é.

Vejo o ar deixá-la por alguns instantes quando arqueja baixo:

- Como?

- É isso aí - solto junto a uma respiração profunda e me forço a olhá-la nos olhos - e não é de agora. Foi você quem me encontrou naquele dia pelos arredores da Base, não foi?

 Seus olhos semicerram-se enquanto encaram os meus com tanta irritação que as narinas inflam.

 - Eu deveria ter acabado com você quando pude!

 Percebo as sobrancelhas irem de encontro ao couro cabeludo.

 - E por que não fez isso? - minha voz assume um tom próprio de desafio. - por que hesitou?

 - Porque eu fui uma idiota. - é perceptível o quão difícil lhe é assumir a derrota. - Quando pretendia me contar sobre o Steve? 

 Comprimo os lábios, pensando talvez não o suficiente nas próximas palavras.

 - Eu não pretendia.

 Eleven dá um furioso passo à frente.

 - Como consegue ser tão sangue frio? Você tirou a vida de uma pessoa, de um ser humano, e não parece nenhum pouco ressentido com isso.  - seu lábio inferior treme - Você não vale nada, Mike.

 Minha postura vacila um pouco no instante em que seu dedo se encaminha ao gatilho e, pela primeira vez na tarde, acho que disse a coisa errada na hora errada.

 Mas o que eu poderia lhe responder?

 Mesmo que ela continuasse sob o disfarce da garota desmemoriada, não é como se eu simplesmente fosse confessá-la que tinha ferido alguém. E muito menos que esse alguém viera a falecer por um ferimento que eu não causara.

 Tinha certeza de que não fora a minha faca que levou embora a vida do soldado. Eu sabia o que estava fazendo.

 Retraio os ombros, desviando os olhos para o chão. Sei que as probabilidades de fazê-la acreditar em mim, acreditar na verdade, eram muito menos que mínimas.

- Não fui eu que o matei.

 O revólver em suas mãos, que sei provir da família das pistolas de bolso, oscila; seus nervos estão visivelmente aflorados, o que se pode notar na forma como suas pupilas dilatam em demasia e o espaço abaixo das escleras está preenchido por lágrimas que aprisiona com todas as forças.

Mileven: Two WorldsOnde histórias criam vida. Descubra agora