4. Implosão Sonora

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Confesso que depois do fatídico dia 31 de dezembro de 2014, mais ainda quando encontrei Samanta morta, em 09 de junho de 2018, fiquei aficionada por datas

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Confesso que depois do fatídico dia 31 de dezembro de 2014, mais ainda quando encontrei Samanta morta, em 09 de junho de 2018, fiquei aficionada por datas. É por esse mesmo motivo que consigo me lembrar com muitíssimos detalhes da fria noite de 26 de outubro de 2040. Nessa data, Saleiro, Helena e eu marcamos um programa qualquer para visitar um novo pub da cidade que tinha acabado de ser inaugurado. Era enorme e luxuoso, tinha uma variedade boa de porções, bebidas, e também lá havia um palco para os músicos boêmios que, naturalmente, dedilhavam e tocavam seus instrumentos.

— Que lugar fixe, amor! — disse Helena a Saleiro, animada com o novo pub, o Black House. — Ainda bem que não encheu como imaginávamos. És o melhor. — E lhe depositou um selinho.

As demonstrações de amor do casal sinceramente sempre me embaraçavam de todo. Às vezes sentia que os estava atrapalhando, mas eles sempre me tratavam como uma grande amiga e era impossível não me sentir incluída nos passeios. Periodicamente saiam sozinhos, mas eram muito frequentes os convites incluindo a mim. Eles eram meus grandes amigos.

Durante a semana, sempre que estava longe deles, sentia-me angustiada, pois não tinha companhia e ficava me lembrando de Samanta, lendo o caderno de capa verde, a lembrança de como éramos intrínsecas. Minha linda portuguesa, enterrada na flor da idade e na mesma lápide desde 09 de junho de 2018. Completaria quarenta e dois anos em dezembro, já que eu tinha quarenta e um. Eu não podia me esquecer jamais daquela face pálida e mórbida morta por mea-culpa, minha tão grande culpa... Como eu podia apagar isso da memória? Na época, era um rombo que não sarava. E por isso é que bebia, já na altura cervejas de baixa qualidade, e fumava. Pois a bebida alegra e o cigarro acalma. Falsa sensação de realização, ó grande amigo leitor, isso foram tempos de cão.

E todos me odiavam no Bom Tempero, com razão. Saleiro amoleceu meu coração, por outro lado, eu não tinha contato assim com nenhuma das gentes do emprego. Além de ser negra, eu era estrangeira. Muitos torciam o nariz para meu sotaque e pelo pela minha nacionalidade, e não deixava passar em branco com o meu desprezo e sarcasmo. Trabalhava duro — esse era o motivo que fazia meu chefe me manter no posto de cozinheira. Em Portugal, muitos acham que o Brasil é um mau exemplo aos portugueses. Dá-lhe novelas quentes, funk e política. Eles têm um senso de nacionalismo forte, que não se vê no Brasil exceto quando há Copas do Mundo masculinas. Mas voltemos ao pub Black House.

— O que queres comer, Juliana? — perguntou-me Saleiro. — Podemos dividir uma porção de salmão e outra de picanha, o que acham, hein Helena?

— Por mim está óptimo — retorquiu Helena.

— Tudo que eu gosto, ainda mais com uma cervejinha junto. Fica perfeito! — respondi a ele.

— Hey, quanto de cerveja andaste bebendo a casa? — Já sabendo que eu abusava de bebida, Saleiro tentou me corrigir, mas minha mentira foi convincente:

— Quase nada. Vou lá fora fumar e já volto.

Logo acendi um Marlboro e me deixei estar. Distraí-me ao embalo do gosto bom de fumaça e fogo do cigarro, tanto mais que nem notei quando a música Fear of The Dark começou a ser executada em guitarra, por uma voz feminina muito empoderada. Iron Maiden é uma banda incrível, mas minha paixão fica no campo do metal melódico. Entretanto aquela voz rasgada e tão apaixonada me chamou muita atenção, de tal forma que eu quis ver quem estava por trás daquela guitarra. Já pensava que era uma mulher alta, cheia de tatuagens, piercings e tudo o mais. Ledo engano — era uma ruiva miúda, de uns vinte anos, olhos azuis grandes que saltavam para fora de tão brilhantes e exuberantes que eram. Usava um corpete preto e vermelho e calça de couro; a guitarra, uma Gibson vermelha com desenhos de labaredas.

Ignorei-a e me sentei à mesa com Helena e Saleiro. Entretanto, por um capricho do Universo, estava de frente para a cantora e me impressionei muito com os solos de guitarra que ela fez. Mas, o que me admirou ainda mais, foi a música que ela executou em seguida: Cry For The Moon, do Epica. Era um clássico das minhas músicas favoritas, e apostei que aquela voz rasgada não entoaria uma opereta ou os guturais — segundo engano: a garota era soprano e também cantava vocais sujos. Fiquei tão aficionada que Saleiro precisou me beliscar para eu voltar a realidade:

— Conheces ela? — ele me perguntou.

— Claro que não — falei de supetão. — É a música, uma das minhas favoritas. E ela canta tão apaixonadamente e bem, tem uma pegada na guitarra tão boa, é tão... — E tentei me explicar a Saleiro que me olhou desconfiado.

— Não me digas que criaste um crush pela cantora? — E riu gostosamente.

— Não seja tonto! — esbravejei. — Só achei que canta e toca bem.

Então, a musicista começou a tocar apenas músicas que eu adorava de symphonic, gothic, power e death metal. A comida chegou, porém o meu foco único era essa cantora espetacular. As cervejas me deixaram tão animadas que eu quase saí dançando Center of The Universe, do Kamelot, com um cigarro entre os lábios. Mesmo depois de termos terminado nossos pratos, eu não queria ir embora — a cantora me delirava e colocava uma alegria no meu coração que desconhecia há anos. Saleiro percebeu minha ligação com a musicista e fez cera com sua namorada, dando uns beijos e amassos nela, enquanto eu olhava para a moça artista e me enamorava de sua música.

Por fim, a jovem mulher encerrou sua apresentação, dizendo, ainda em pé, segurando sua guitarra:

— Foi um enorme prazer estrear a Black House convosco. — Sorriu linda e enormemente. — Sou a Cecília Braga Nunes e meu contato é... — E repetiu duas vezes um número que não me lembro. — Foi um arraso, até breve! — falou energeticamente e fez os chifres de metal com os dedos quando finalmente se foi aos fundos do palco.

Quando girei de volta a cabeça para a mesa, vi que tinha um Saleiro aos amassos com Helena. Quase vomitei vendo-os por alguma razão. Então quebrei suas carícias quando disse:

— Até a cantora já se foi, melhor nós irmos, não é? — E os olhei envergonhada.

— Ah, desculpa-me por isto — respondeu Helena se referindo aos beijos. — Mas estavas tão concentrada na rapariga que tocava, que perdemos a linha. — Riu-se.

— Vamos então — disse Saleiro, alegre. — Eu pago toda a conta, certo Juliana? — Ele olhou-me e eu apenas assenti como sempre fazia. — Todos sabemos que sou rico e que seria injusto contigo. Agradecemos por tua presença. Apesar de teres falado pouco e cantado muito, foi ótimo como sempre. Não sabia que eras metaleira e que tinhas uma voz tão bonita.

— Voz bonita? — Gargalhei. — Não chego aos pés da Cecília. Sou muito amadora.

— Quem é a Cecília? — perguntou Saleiro, quando percebi que eu tinha sido a única a guardar o nome da musicista que se apresentara no Black House.

— A moça que se apresentou hoje. — Disfarcei minha memória estranhamente aguçada.

— Hum, entendi. — Saleiro ficou pensativo. — Mas vê se pára com esta mania de desprezar a ti mesma. Isto é feio.

Apenas dei de ombros e subimos no carro de volta para nossas casas.

Apenas dei de ombros e subimos no carro de volta para nossas casas

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