A campainha tocou — era Cecília, como havia visto pelo olho mágico. Estava linda vestida com uma camiseta antiga do Angra e um jeans azul. Fiquei me perguntando se a escolha da camiseta não tinha sido uma espécie de flerte, mas, cega para as coisas do amor, convenci-me de que tenha sido aleatório. Certifiquei-me de que estava adequadamente vestida e pigarreei, nervosa, antes de abrir a porta.
— Olá, Cecília! — Sorri para a guitarrista. — Pode entrar e fique à vontade. — E a mulher entrou depois de dar a mão para mim, puxando uma mala de rodinhas com a pequena caixa de som e a guitarra nas costas
Assim que ela entrou pela sala, arrumou rapidamente o som. A minha guitarra emprestada era uma velha Tagima preta com degrade caramelo. Não reclamei do estado, apenas observei que estava bastante riscada, judiada, e o braço todo gasto pelas marcas de dedos.
— Pareces de não ter gostado da guitarra que te emprestei — observou ela, rindo-se, enquanto eu passava os dedos pelas marcas do braço.
— N- não, pelo contrário, é que ela está...
— ...Nas últimas? — E riu-se ainda mais. — Qualé, também foi minha primeira guitarra. Empresta cá. — Dei-lhe o instrumento, Cecília regulou, sentou-se no sofá ao meu lado e, de súbito, tocou o solo de Angel Of Death, do Slayer, os dedos ágeis que não fizeram nenhum esforço para alcançar a velocidade da música. — Viste? Não é má guitarra e, ademais, eu tenho memórias muito felizes com ela.
— Nunca vou me cansar de dizer que és a melhor guitarrista que já conheci! — Olhei no fundo dos seus olhos azuis, admirada e apaixonada, mal conseguindo esconder o quanto estava caída de amores. Cecília enrubesceu-se.
— Qualé, deixas de enaltecer-me que não vou ser professora boazinha só por causa de elogios. Vamos começar? — retrucou ela, divertida. — Toma a guitarra e esta paleta. — Entregou-me o pequeno objeto. — Por enquanto vais tocar sentada.
Peguei o cabo da guitarra com a mão esquerda e a paleta com a mão direita. Acomodei o instrumento no colo. Dei uma palhetada; o som disforme e estridente saiu pela caixa ecoado pela sala. Como achei aquilo divertido, fiquei batendo nas cordas como uma criança boba, fingindo que estava tocando algo.
— Na boa Ju, queres aprender a ter dedos fatais ou ficar palhetando igual uma criancinha? — Segurou meu braço para que eu parasse e olhou para mim com um semblante de dúvida.
E eu sorri feito boba, pois ela tinha me chamado de Ju, um apelido que ninguém nunca me havia dado! Será que realmente gostava de mim? Não, não achava que podia ser realmente assim tão instantâneo. Se eu regulasse de idade com ela, se eu não fosse uma mulher falida, estrangeira, pobre, sem atrativos... Se ela não fosse tão bonita e talentosa... Eu era o demônio, e ela o anjo. Ou, talvez, num devaneio, fossemos ambas meio máquinas, meio monstras. Mas isso não importa por enquanto.
— Desculpa, só me empolguei. — Sorri amarelo dessa vez. — É que eu queria poder aprender tudo em dois segundos.
— Ainda não inventaram um chip para isso. O jeito mesmo é aprender na raça. Vamos começar, Ju? — Ela repetiu o apelido pela segunda vez, e eu fiquei em êxtase e só concordei. — Bem, teu primeiro acorde será um mi menor, e tua primeira sequência, mi menor com lá menor, mas foquemos no mi menor. Empresta tua mão esquerda. — Então ela posicionou meu dedo médio e o anelar nas casas corretas, e eu só aproveitei a delícia do toque de suas mãos na minha, que forçavam com alguma dificuldade meu braço e dedos a ficarem retos e dentro dos trastes da guitarra.
Quando eu finalmente consegui entender como era a forma do acorde, ela disse:
— Aperta firme as cordas do braço e dá uma palhetada da primeira corda que tu apertaste até a última com a mão direita. — Eu o fiz e saiu um som um pouco frouxo, mas bonito. — Aperta mais duro! — insistiu ela, e eu obedeci, pondo mais força nas cordas do braço. Então o som saiu perfeito. Senti-me rejubilante.
— Parabéns, Ju, é assim mesmo, estás a entender-me. — Sorriu lindamente ela. — Agora tenta puxar da memória onde fica a forma do mi menor sozinha, aperta as cordas e faz isto de novo.
Passei algum tempo tentando me lembrar entre quais trastes da guitarra ficava a forma. Lembrei-me que era na segunda casa. Posicionei um pouco desajeitadamente os dedos nas cordas, apertei e palhetei. O som saiu certo novamente. Comemorei com uma dancinha esquisita meu próprio sucesso. Cecília achou aquilo divertido.
— Muito bem, tenho uma aluna perspicaz! — exclamou ela. — Agora vamos fazer o mesmo com o próximo acorde.
E repetimos o processo novamente, que foi mais difícil dessa vez, pois o lá menor tem três cordas. Precisamos do restante da aula de uma hora para que eu conseguisse alcançar sucesso nesse acorde. Para arrematar a primeira lição, Cecília me pediu a guitarra de volta e me mostrou como ficava o som quando passava rápido entre mi menor e lá menor.
— Isso é uma música! — exclamei.
— Só se forem as porcarias que tocam no rádio. — E ela tocou e cantou o trecho de uma música que estava na moda chamada Rebola No Colo Do Pai que só tinha esses dois acordes. — Parou, subitamente, fazendo desdém à música. — Se quiseres ser a Juliana dos dedos fatais, vai ter que saber mais do que dois acordes. — Começou a fazer uns acordes esquisitos e a cantar Secret Garden.
Enquanto Cecília tocava, eu devaneei. Perguntava-me se estava tocando de propósito aquela música em menção a nós. Quis apagar qualquer ilusão que minha mente sabotadora poderia estar fazendo sobre uma possível atração de Cecília por mim. Não podia ser! Ela cantava e timidamente sorria para mim, como quem quisesse dizer àquelas coisas a mim. Será que minha mãe fantasma realmente estava conspirando entre nós? Hoje eu sei a resposta, mas na altura não sabia. Olhava para o cinzeiro de relance, repleto de tocos apagados.
Cigarro apagado é sinal de esperança. Então Anastácia apareceu em minha mente. Insistiu ela: cigarro apagado é sinal de esperança....
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Café Amargo 2 - O Reencontro (Duologia Cafés Parte 2)
RomanceO ano é 2040. Depois da morte de Samanta, Juliana se vê perdida em uma vida infeliz. Muitos anos depois da fatídica morte, as lembranças do passado ainda assolam sua mente, e ela passa a beber e fumar em troca de se esquecer de suas mazelas. No enta...