— Bom dia, Cecí... Espera... Cecília? — indaguei em busca da minha namorada, que não estava deitada mais junto de mim pela manhã.
Levantei-me vagarosamente, procurando-a. Vi que seus sapatos ainda estavam ao lado da cama. Coloquei minha roupa, fui à sua busca. Não pude prever a confusão quando a vi lendo o caderno de capa verde logo acima da mesa da cozinha.
— Quem é Samanta, esta rapariga dos contos e poesias que aparentemente era tua musa? — Seus orbes azuis cintilavam com um pouco de ciúme.
Devia dizer toda a verdade a ela? Minha ideia de ocultar Samanta dela estava estragada devido a um mísero descuido. Eram as artimanhas do Universo. Encarei-a, demorei a responder. Creio que ela merecia a história completa, já que ela mesma tinha sido Samanta um dia.
— Se eu te dissesse que eu era uma pseudoescritora falida antes de vir para Portugal, você acreditaria? — arrisquei.
— Pelo que li, tu tinhas óptimo jeito com as palavras. Porque paraste de escrever e, sobretudo, por que nunca contaste a mim? — Quis saber ela.
— Cecília, a pessoa que me motivou a escrever o conteúdo desse caderno... Bem, eu não sei por onde começo, pois acho que vou ser mal compreendida — Hesitei. — E, também, faz tanto tempo... Essa garota já morreu, a começo de conversa, com uma xícara de café envenenado. Suicídio. Você estava nascendo nesse dia, foi em 09 de junho de 2018. — Ela me olhou curiosa. — Acho melhor não falarmos disso...
Estava rumando para a pia tomar café, calada, quando Cecília me segurou pelo braço. Parei bruscamente.
— Conta-me, não vou ficar magoada. Tu nunca me contaste sobre o teu passado, é uma boa hora.
Suspirei.
— Vamos tomar um café primeiro. É muito significativo que a gente faça isso — comentei.
Fizemos nossos cafés, fomos até a mesa da cozinha. Sentamo-nos. Era a hora da verdade.
— Nunca se perguntou por que eu imigrei para Portugal com menos idade que você? — questionei, bebericando da xícara.
— Na verdade, sempre. Mas não queria chatear-te com perguntas. Tinhas um olhar misteriosamente entristecido no Black House, pois se não pensas, depois do dia que executamos Secret Garden, passei a observar-te com curiosidade. Notei que olhavas para mim com desejo contido. Mas não pensei que estivesses apaixonada até o dia do desenho, na edícula do Saleiro. Pensava que tinha algo de errado com a imigração, mas nunca perguntei. Já que cá estamos, como era sua vida no Brasil?
— Eu morava num subúrbio de São Paulo e minha mãe era empregada doméstica. Ela era um anjo, fazia de tudo para eu ter uma vida normal de adolescente. Éramos só nós duas e mesmo com pouco dinheiro, eu era feliz. E eu escrevia o que chamava de romances pseudofilosóficos e colocava na internet. Quando tinha quinze anos me apaixonei por uma usuária que também escrevia, essa era Samanta. Aconteceram muitas coisas, acredite, até que minha mãe foi assassinada e Samanta desapareceu da internet. Tinha dezoito anos nessa época, fui forçada a arrumar emprego, mas Samanta não saía de minha cabeça. Um belo dia, resolvi imigrar para Portugal para encontrá-la e me declarar, já que fui covarde em boa hora. Vendi tudo, arrisquei minha vida para morar aqui. Conheci Saleiro, que era primo dela, ele estava começando a carreira de jogador de futebol. Descobrimos que Samanta havia se suicidado, tudo leva a crer que por minha culpa. Jurei nunca mais escrever um caractere sequer após a morte dela e apagar minha sina de pseudoescritora falida da minha vida. — Arrematei o café, entristecida.
— Ju, não fiques assim. Pensas que se não fosse por isto, não teria me conhecido! — Ela afagou meus cabelos despenteados. — Meus dedos fatais não te deixam felizes? — Sorriu maliciosa. — O passado passou!
— É que você não entendeu a ironia. Você é Samanta!
— Como é que é? — Cecília me fez uma feição incrédula, como quem não estava entendendo nada.
— Não sei em que você acredita, mas vou falar mesmo assim. — E dei continuidade. — A atração que eu sentia por você, a paixão, eram imensuráveis. Mas eu não me dava ao luxo de ficar com alguém por causa de Samanta. Ela seria minha namorada de mentirinha para sempre. Minha mãe já falecida apareceu em sonho para mim e me disse que você era a reencarnação dela. Eu converso com o espírito da minha mãe. Ou acho que conversava, já que ela se despediu de mim ontem enquanto transávamos. Foi por isso que dei outra chance ao amor. Porque, melhor dizendo, você foi Samanta um dia.
Cecília me olhou um pouco desconfiada do que ouvia. Ela era uma típica metaleira ateia que não estava nem aí para religião.
— E por que sua mãe falaria com você? — indagou ela.
— Porque era sua missão para ascender a uma consciência mais elevada nos unir. Agora que meu destino primeiro, Samanta, estava em você — expliquei. — Relaxa, eu não sou uma religiosa bitolada, apenas sincretista. Ou você acha a maior coincidência do Cosmos ter nascido no dia que Samanta estava morrendo?
— É, isso é realmente estranho...
Olhamo-nos por alguns instantes, caladas. Tive uma súbita ideia.
— Gostaria de saber de detalhes sobre meu passado com Samanta? — perguntei a Cecília.
— E como gostaria... — respondeu ela, para minha surpresa.
— Em 2018, pouco tempo depois de me instalar em Lisboa, escrevi um livro. Ele se chama "Café Amargo".
— Tu escreveste um livro inteiro? — Surpreendeu-se ela.
— É — respondi, como se fosse a coisa mais normal. — Ele é meio besta, assim, sabe, mas conta a história da minha vida. Vou pegar para você ver.
Busquei pelo velho caderno de finanças no meu quarto. Estava guardado no fundo de uma gaveta do guarda-roupas. Voltei a cozinha e entreguei a ela.
— Esse é meu livro. Modesto, um velho caderno. — E dei risada.
Cecília folheou e viu minha velha letra cursiva em azul impregnada nas folhas. Seu semblante era de espanto.
— Tu escreveste tudo a mão? — disse, boquiaberta, e eu assenti. — Tua letra itálica parece desenhada aqui, que loucura... Esta é a única cópia?
— Sim. E quase foi para o lixo diversas vezes, assim como o caderno de capa verde que você estava lendo — reforcei.
— Não te atrevas! Quero ler tudo, posso? — perguntou ela.
— O que eu não faço pela minha namorada... Pode, leia! Chafurde no meu passado e descubra o trapo humano em mim!
— Não faças drama, Ju! — E riu-se Cecília. — Um dia um destes cadernos podem ser teu best-seller! Nunca pensaste em viver de arte como eu?
— Para falar a verdade, nunca tive o direito de sonhar...
— Pois sonhes, a hora é agora!
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Café Amargo 2 - O Reencontro (Duologia Cafés Parte 2)
RomanceO ano é 2040. Depois da morte de Samanta, Juliana se vê perdida em uma vida infeliz. Muitos anos depois da fatídica morte, as lembranças do passado ainda assolam sua mente, e ela passa a beber e fumar em troca de se esquecer de suas mazelas. No enta...