2. A Festa de Aniversário

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Fui à festa de Saleiro vestida como o de costume — uma camisa de botões, um jeans e nenhuma maquiagem

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Fui à festa de Saleiro vestida como o de costume — uma camisa de botões, um jeans e nenhuma maquiagem. Penteei meus cachos rebeldes cuidadosamente, para tão logo chegar ao estacionamento e dar partida no meu velho Alfa Romeo cinza. Com um cigarro entre os lábios, rumei em direção ao endereço da chácara e, naturalmente, encontrei o local sem muitas dificuldades.

Saleiro foi quem atendeu a campainha animado. Estava sem camisa e com uma bermuda da Adidas. À mostra via-se sua nova tatuagem — um belo lobo negro entremeio a algumas folhas e detalhes em azul, verde e vermelho que fechavam todo o seu braço esquerdo. Estava mais musculoso do que antes e deixara a barba crescer um pouco mais. Se arrependimento por beleza matasse, eu certamente estaria em maus lençóis, pois Saleiro estava de fato muito atraente naquela simples noite de verão.

Repreendi severamente minha mente por reparar na beleza do jogador. Para mim, qualquer vestígio de sexualidade que ainda pudesse existir em mim, se direcionado a alguém que não fosse Samanta, tornava-se pecado mortal subjugado a pena de prisão perpétua nas labaredas do Inferno. Jurei que meu coração estava blindado e guardado às sete chaves em honra à falecida. Para tal, comprei uma aliança dourada que decidi usar no anelar de compromisso. Esposa da Morte, como eu mesma me apelidei, tinha aversão em pensar sequer que eu pudesse beijar novamente. O anel era simplesmente uma placa de pare para qualquer oportunidade de corresponder alguém, fosse quem fosse.

Oh, longínqua culpa, o que era eu se não uma mulher esquisita? Esquisita sim, no entanto por mais piegas que fosse, não julgo o cabimento desses comportamentos de outrora com o fardo de uma mulher de meia-idade. Eu penso que dia após dia vivemos experiências e, boas ou más, edificam-nos. Um pequeno detalhe, mas lotado de significações. We are the others! E devemos seguir como norte a nossa necessidade. De qualquer forma, eu estava em luto e não cabe sobre mim o julgamento. Essas palavras servem de advertência. Tão somente.

Então me concentrei ao que realmente importava e o cumprimentei com um sorriso simpático:

— Saleiro, quanto tempo não te via... Você está ótimo!

— Obrigado, Juliana! — respondeu simpaticamente. — Os bons hábitos que acatei na academia do Sporting estão enfim fazendo resultados.

— Gostei da tatuagem — disse eu, enquanto entrávamos portão adentro. — Queria fazer alguma também, mas não sei o quê. — Dei de ombros.

— Comeces por algo pequeno. Que tal uma frase de superação? — sugeriu Saleiro.

— Como se eu tivesse realmente superado algo? — retorqui irônica.

— Não me digas que ainda pensas caraminholas acerca de Samanta? — desdenhou o jogador, abanando a cabeça. Apenas acenei que sim.

— A aliança... Pensei que isto fosse um noivado. O que é? — perguntou ele.

Fiquei atônica. Era a primeira vez que alguém me perguntava sobre a aliança. Antes, era como se ninguém se importasse, já que eu era fria com todos e todos comigo. Mas Saleiro parecia se importar realmente com a minha pessoa e com nosso passado, o que me deixou duplamente embasbacada. Na altura, tínhamos sentado numa mesa a sós. Saleiro sabia muita asneira sobre mim, mas a aliança era mesmo uma enrascada. Parecia psicótica a história por trás dela, o que me deixou descontente e aflita. Porém, eu não tinha como mentir sobre isso, então acendi um cigarro no meu piloto automático de sempre e o respondi com a droga entre os lábios:

— Olha o que está escrito dentro. — Então retirei o anel do dedo e mostrei o nome cunhado dentro. — Samanta Pescada Saleiro, o nome da única pessoa que vou amar de verdade a vida toda. Eu me apelidei de esposa da morte, já que ela está morta de corpo, mas não de espírito, pelo menos para mim. Pode me julgar à vontade. — Dei risada, tragando outra dose de nicotina.

— Tenho que admitir que soa estranho. — Ficou pensativo. — Cigarro?!... — Finalmente percebeu que eu estava fumando e esbravejou como se eu estivesse me matando aos poucos. — Sabes quanta porcaria tem nesta coisa?

— Acalma pelo menos. Aliás, até que é gostoso: tem gosto de fogo.

Saleiro discursou sobre bons hábitos, e eu apenas assenti, mesmo que não estivesse nem um pouco disposta a parar de fumar. No entanto, logo emendamos num bom papo sobre as coisas do cotidiano. Contei sobre a droga da vida que andava vivendo e ele me disse algumas palavras de conforto, qualquer comentário clichê que me não afetou em nada o meu estado emocional da época. Porém, preciso admitir que foi muito atencioso para comigo. Podia ter me ignorado pela chatice e ter ido curtir sua festa com os outros amigos. Por outro lado, preferiu me dar atenção.

Logo me familiarizei com o ambiente. Um amigo de Saleiro me ofereceu uma cerveja, e eu logo aceitei. Pela primeira vez a muito tempo não fui fria para com todos daquele lugar. Saleiro talvez tivesse tido algum efeito em mim, não sei ao certo também. Interagi regularmente com os outros amigos do jogador e cheguei a dar muita risada, bêbada, depois de misturar bebidas curtas com cerveja, sentada à mesa de poker, apostando o que não tinha. Ainda bem que costumava ter sorte com as cartas.

A bebedeira é gostosa a princípio, eu admito. Um pouco de tontura e pronto, tudo se torna engraçado, divertido e alegre, nada do que eu costumava a ter na minha vida sóbria. Costumava a beber no dia a dia para me esquecer do trapo humano que eu era, e principalmente, para me liberar da culpa contínua pela morte de Samanta. Geralmente funcionava, eu ficava um pouco grogue e ia dormir resmungando sozinha. Mas eu só bebia cerveja. Naquela noite, misturei muita vodca com cerveja e outros drinks. O resultado foi lamentável.

É difícil para mim me lembrar de detalhes do que aconteceu depois que passei mal e vomitei nos shorts de Saleiro, enquanto ele tentava me socorrer de um desmaio. Vagamente, lembro-me de cenas cortadas. O rapaz me pegando pelo colo e me pondo chuveiro abaixo. Minha violenta luta contra o banho e seus toques preocupados. Meus gritos. Sua voz pedindo controle. Meu segundo desmaio. Vozes. Ambulância. Hospital. Festa de aniversário estragada.

Quando recobrei a consciência, estava deitada numa cama de hospital, e Saleiro me observando entristecido pelo meu estado. Então me caí em mim e pedi um milhão de desculpas pelo meu comportamento irresponsável em sua festa. Ele pareceu entender que eu andava solitária demais e que a festa foi uma válvula de escape para minha falta de vida social e amigos.

Talvez no início daquele recomeço, Saleiro tenha tido compaixão de mim para insistir e me convencer a ir a outros encontros com ele, geralmente junto à sua namorada, Helena, a pubs requintados de Lisboa, procurando sempre a controlar a quantidade de bebidas que ingeria. Eu sempre comia um bom churrasco e ouvia música de qualidade enquanto conversava com o casal de bom grado e evitava parecer um empecilho na relação dos namorados. Saleiro era uma boa pessoa.

 Saleiro era uma boa pessoa

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Café Amargo 2 - O Reencontro (Duologia Cafés Parte 2)Onde histórias criam vida. Descubra agora