Onde Reside o Desejo (Concluído)

.04.

ELE

Roubar é algo fácil, para os que sabem fazê-lo. Principalmente roubar de quem tem muito. Como minha casa. Eu sempre seguia por essa lógica: o que meus pais sentiriam menos falta, um anjo de cerâmica que fica no corredor do segundo andar, ou um castiçal de prata da sala de estar? Tento ignorar minha dúvida e pensar que não faria diferença no fim das contas, então decido ir até a sala de estar. Espero conseguir no mínimo oitenta dólares com essa bugiganga.

Ou meus pais nunca perceberam as coisas que roubei daqui, ou nunca falaram nada. Costumo acreditar ser a segunda opção, acho que eles só não querem ter a preocupação de que eu esteja fazendo algo errado. Ou de que eu esteja fazendo algo, o que quer que seja. Andando pelo corredor que vai até a sala, percebo que não costumo estar em casa nesse horário, o que eu geralmente saio nos dias de semana. Mas resolvi dar uma passada depois da chatice de serviço comunitário, o qual eu estava conseguindo corromper com cada vez mais facilidade com a trocas de drogas por horas cumpridas com o supervisor. Uma grande hipocrisia, pois elas me colocaram lá. Hoje fui honesto e cumpri as horas depois do meio-dia, tentando preencher minha cabeça que não fosse a pressão de Monique para ir vê-la ou a festa e todo o planejamento em conjunto que Olga vem comentando. Por esses e outros motivos, estou sempre com alguma desculpa para não estar onde estou agora.

Pois, por mais que me apeteça a ideia de passar a noite inteira na parte baixa da cidade, eu não posso faltar mais aulas, então aproveito o início da noite para usar o que tenho que usar, preciso me acostumar à rotina para a próxima semana. Assim, o efeito passará com tempo suficiente para eu acordar o mais limpo possível para a aula.

Chegando ao arco que leva a sala, escuto uma voz diferente, baixa e aveludada. Ao chegar mais perto percebo que ela está falando outra língua, está falando em espanhol. São sussurros firmes e ela parece estar mediando algo, pela dicção estável nas trocas de cada frase que eu não consigo entender. Não sei porque um funcionário está usando o telefone da sala de estar. Entrando na sala, vejo que não é um funcionário, mas sim uma garota. Baixa e de cabelo curto, ela está de costas pra mim, usando um vestido xadrez verde. Nunca a vi na vida, mas tenho a impressão de que deveria saber quem é, pela intimidade que ela demonstra sozinha usando o telefone da minha casa. Ela parece perceber minha presença e me olhar por sobre o ombro, tampando o bocal do telefone. Eu a reconheço. Não sei de onde, mas a sensação de assustada que ela me passa com os olhos castanhos me dizem que sim. Ela parece terminar a ligação e suspira forte ao devolver o telefone à mesa, se virando para mim.

-Desculpa, Louise me deixou usar o telefone.

Ela está com Louise. Elas eram amigas? Não me lembro de a ter visto. Mas não lembro de nenhuma das outras amigas de Louise no momento.

Passo os olhos pelo seu corpo e percebo que ela se veste de uma maneira modesta, com o vestido abaixo dos joelhos, uma meia calça e sapatos fechados. Seus braços estão cobertos por um casaco branco. A garota continua me encarando, virando o rosto à procura dos meus olhos, que estava ocupada em suas pernas, como se esperasse que eu falasse algo.

-Você está muito calado, ok. - ela diz, parecendo nervosa por alguma razão - Escuta, me desculpa pelo outro dia, eu não...

-Outro dia? - dou um passo para dentro da sala, ficando a uma distância mais curta dela, em frente à janela.

A garota parece confusa quando franze as sobrancelhas e morde os lábios inferiores. Aproveito seu momento de interpretação sobre o que quer que estivesse pensando para a olhar melhor. Tem um rosto lindo, discreto para os olhares apressados, mas com um maxilar bem definido e nariz empinado que delimitam muito bem seu perfil. É bonita. Mas se é amiguinha da Louise deve ter pouco mais de dezesseis. Afasto meus pensamentos duvidosos sobre suas pernas definidas sob o tecido da meia calça.