Onde Reside o Desejo (Concluído)

.30. 2/2

ELE

Eu adorava a sensação de uma noite bem dormida, experiência que eu tive pouquíssimas vezes nos últimos anos. O abrir dos olhos devagar, sentindo-se descansado, a pouca percepção do ambiente em quantidade ideal, não por estar inconsciente ou drogado, mas por estar até poucos segundos, num local profundo de sonhos e segurança. Minhas pálpebras se desgrudam pouco a pouco, deixando a luz entrar e a primeira coisa que noto é o cheiro de Maria em mim. Vejo que o outro lado da cama, onde eu lembro vagamente de ela estar tempo atrás, está agora vazio. Mas seu cheiro está tão intenso quanto se meu nariz estivesse grudado em seu pescoço. Sento na cama, de alguma forma me perguntando o porquê de ela não estar aqui, mesmo sabendo o óbvio, que é por Louise e os outros não suspeitarem. Um brilho em um dos travesseiros me chama atenção e vejo que o fino colar de cruz que ela costuma usar está posto lá. Toco o metal e dou um sorriso, imaginando o quão poético isso seja.

Resolvo levantar rápido e descer, talvez eu ainda a visse se despedindo de Louise. Talvez eu simplesmente a visse mais uma vez. Na sala de jantar, que está sendo recolhida por alguns funcionários, percebo que todos acabaram de comer, e pela contagem dos pratos, ela e a irmã ainda estão nessa casa. Antes que eu possa correr para ir até lá em cima, Olga aparece em um dos corredores e sorri, como se estivesse me procurando.

-Aí está você! Eu achei mesmo que tinha visto você descer as escadas. - Me entregando um amplo sorriso, ela anda em minha direção. - Você vai para a matinê comigo hoje?

Olga e eu costumávamos assistir à primeira sessão do cinema de domingo juntos, quando eu estava em casa. Como no dia em que vimos Maria na lavanderia com sua família.

-E onde você estava?

-Ajudando as visitas a se aprontarem e irem embora. - Algo obscurece em sua feição, e não consigo ver o que é. - Eu preciso te contar algo sobre Maria...

Como se conjurada por seu nome ser falado, as irmãs descem com Louise no encalço falando animadamente sobre sua festa de ontem à noite. Meu coração começa a bater mais rápido quando a voz doce de Maria agradece Louise pelo convite. Ela só está a alguns metros de mim, mas me sinto magneticamente ligado a ela, minhas mãos coçam e as coloco no bolso da calça escura que uso, tentando fazê-las pararem. Quando ela abraça minha irmã, seus olhos vêm em minha direção por cima do ombro de Lou. Sorrio sem controle e disfarço, tentando conter meus lábios que imploram por abrirem outra vez. Ela não sorri, mas há algo intenso em seu rosto. Maria se despede e sai com a irmã para o jardim.

Ainda estou olhando o local em que ela estava segundos atrás, tentando me recompor. Minha euforia é interrompida quando Olga me dá um tapa seco na base de minha nuca, empurrando minha cabeça para frente.

-Ai! Porque fez isso? - Levo minha mão direita para o local ardente e quando me viro para olhar minha melhor amiga, ela está vermelha e seus lábios estão rígidos em uma linha fina.

Minha amiga pisca algumas vezes e me puxa para uma sala mais reclusa, onde ficava o piano de Louise. Olga fecha a porta de madeira escura atrás de si.

-Você transou com ela. - As palavras de minha amiga me ferem pelo tom de sua voz. Algo em sua respiração pesada me assusta.

-O que? - É o que consigo dizer.

-Dale, você transou com ela! - Ela coloca muito ênfase na palavra com "t".

Fico em silêncio. Não irei mentir para ela.

-Meu Deus, você transou com ela. Você é inacreditável! - Ela passa os dedos pintados com esmalte escuro em suas sardinhas marrom. - Você transou com ela.