ELE
Acordar cedo nunca foi meu forte. Lembro da estranha sensação de sentir que os fins de semana não tinham manhãs quando eu era criança, pelo horário que eu costumava acordar. Quando o tempo passou e a cocaína e todo o resto entrou na minha vida, acordar cedo deixou de ser uma questão, pois minha rotina só seguia dois percursos: dormir independente do número que refletisse no relógio, ou não dormir. Ultimamente tenho a sensação de tirar longos cochilos, mas nunca de fato dormir.
Acho que minha aptidão para gostar do silêncio tem alguma relação, e não há nada mais silencioso do que a madrugada. Óbvio que estou falando de Old Hill, uma cidade que vive o estilo pós guerra no ano de 1987, mas ainda assim, o silêncio me agrada. Meus raros e melhores pensamentos vieram em caminhadas que eu tive no silêncio voltando para casa, ou para qualquer outro lugar.
Essa noite não foi uma de bons pensamentos.
Percebo que meu olho direito está latejando e inchado e flashes da noite passada me vem à mente. Meu pai. Meu quarto. Está sendo cansativo reviver minhas memórias em lapsos dos dias anteriores.
A raiva volta a preencher minhas veias, de um jeito não satisfatório. Arthur foi falar com meu pai. O que fez meu pai falar comigo. Aparentemente Katherine chorando por dias chamou mais atenção do que deveria, e meu pai queria explicações. Pelo que ele me explicou minimamente, Arthur falou que Katherine estava ficando com alguém mais velho, e que eu conhecia o cara. Meu pai me machucou tanto, que duvido que meu irmão tenha se preocupado em deixar claro que não tinha sido minha culpa. Acho que eu que estava tentando acreditar nisso.
Na mesma noite, minha mãe conversou com Louise na cozinha, o que eu escutei enquanto me escondia atrás da porta. Louise iria trazer George para apresentar meu pai, no sábado à noite. E Arthur traria Teresa. A notícia me deu ânsia de vômito, e vômito em seguida.
Lembro de sair de casa e me limpar em algum banheiro, andando tempos depois. Mas não lembro de como tudo isso se deu ou exatamente o porquê. Retiro o cigarro que está em minha boca e o jogo no chão. Ao cutucar meus bolsos vejo saquinhos vazios e entendo de onde vem toda a amnésia e confusão.
Meu pescoço também dói e sinto meu corpo suar e esquentar bastante, indicando que não faz tanto tempo que usei algo. Procuro furos em meus braços e ao ver os mais recentes sinto um peso em meu peito e lembro exatamente do que usei. Minhas costas parecem rígidas pelo tempo exorbitante que passei aqui. Em frente a casa dela.
Ela. Todas as minhas dúvidas se iniciavam e findavam nela.
Nas últimas semanas eu de alguma forma que não consigo lembrar ou raciocinar, acabo parando aqui, onde ela está, ou onde deveria. Deve fazer um tempo que eu estou aqui, mas eu não consigo dizer quanto tempo faz, e também o que fiz desde que cheguei. Não gosto de pensar que sou algum tipo de psicopata que a monitora, mas posso garantir que meu corpo me traz até aqui pela sensação de calma que sinto quando ela está por perto. Mesmo que o perto seja cem metros de distância.
Ao olhar no relógio vejo que não é mais tão cedo quando achei, quando o visor me indica ser 7h31min. Eu queria vê-la. Não sei ao certo o que diria. Mas queria muito vê-la. Talvez descobrisse o que dizer quando ela estivesse na minha frente. O que poderia parecer se eu a procurasse a essa hora na manhã de um domingo?
Foda-se. Eu iria descobrir.
A passos largos vou até lá e bato na porta de metal que dá para a casa dela. É uma casa simples, onde a entrada leva às duas casas, a de Maria e a de uma outra moça que tem três filhos. Não tenho certeza da onde tirei essa informação.
Depois de um tempo considerável após minha batida, um senhor de idade abre a porta. Ele usa um uniforme verde escuro de alguma empresa, e é bastante calvo, com uma barba rala em seu rosto, aparenta estar cansado, com o semblante de quem trabalhou a noite inteira. Não parecendo nada feliz em me ver, dada a sua expressão de desprezo com os lábios franzidos. Principalmente pelo hematoma gigante que há em meu olho.
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Onde Reside o Desejo (Concluído)
RomanceNorte da Califórnia, 1987. Em busca de um futuro melhor, a bailarina Maria tem segredos com o objetivo de ir embora e ter mais do que a vida que lhe é proposta, ela só não esperava conhecer Dale, muito menos que ele também tivesse segredos. Na cid...