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ELE

Pela primeira vez, que consigo recordar, tenho pressa para voltar para casa. Tenho pressa de ver Olga me odiando por ter descoberto tudo. Tenho pressa pela reação de meu pai. Quanto mais rápido tudo isso passar, melhor. Minha visão está levemente comprometida pelo inchaço em meu olho esquerdo. Tudo dói, inclusive meus dedos, que sangram. Hoje seria um ótimo dia para morrer.

O desespero que dilata minhas veias desde o momento que Maria apagou se mostrou como abstinência no momento em que Arthur me deixou na chuva. As memórias das últimas horas são nubladas e turvas. Não lembro do que usei, do quanto usei ou do que fiz para conseguir, pois eu não lembro se tinha dinheiro na carteira. O olhar de Maria após a conversa que tivemos em algum lugar da cidade é a única imagem nítida que meu cérebro consegue formular. Posso afirmar que algo morreu entre nós quando eu morri naquela noite. Algo que estava me motivando a ficar de pé, continuar.

Os pés que estão colados às minhas pernas tropeçam ao subir a colina, e quase esbarro em um carro com velocidade mediana, o qual buzina para mim. Ignoro. Porque há tantos carros? Sigo andando em direção à minha casa e quando chego ao jardim da frente, o vejo iluminado como nunca vi antes. O que está acontecendo?

Passo uma das mãos pelos cabelos e os sinto suados, mesmo que não esteja fazendo calor. As luzes de dentro da casa também estão todas acesas. Abro a porta de entrada e vejo no mínimo vinte pessoas vestindo roupas luxuosas e ternos bem passados. Alguns deles seguram taças finas com champagne e algumas mulheres usam luvas. Procuro algum rosto conhecido, mas não vejo ninguém.

-Que porra vocês estão fazendo na minha casa? - Minha voz sai alta e sem ritmo, e percebo que estou bêbado.

A pianista que estava tocando ao fundo para a música. Encaro bem a loira que toca, vestida num tecido azul cintilante, ela me olha sério. É Louise. Ela levanta e passa pelas pessoas, pedindo licença, mas minha mãe me agarra primeiro, por uma direção que eu não estava vendo. Seus dedos finos tocam em meu pulso desnudo e sinto dor. Ela não pode me tocar. Percebo que a dor vem por ela ter apertado os furos inchados que estavam em meus braços. Onde estava meu casaco?

As pessoas cochicham e parecem sem reação no silêncio constrangedor que se forma na sala.

-Dale. Venha comigo. - A voz estranhamente sorridente de minha mãe me chama, mas não consigo raciocinar, estou ocupado encarando os diamantes em seu pescoço. - Agora, filho. Antes que seu pai...

-Você foi longe demais, garoto. Vem aqui. - A voz que me amedronta em poucas palavras me puxa pela gola frouxa de minha camisa. Vou morrer, sinto isso pela aspereza de seus dedos macios em minha nuca, dedos que me puxam para longe da multidão.

-Frank, aqui não! - Minha mãe pede. - Me desculpe. - Ela diz para alguém. - Tara, Bridget, recolham tudo e se desculpem. Frank!

Ela chama meu pai, mas ele é alto, tem passos mais largos e não está usando saltos. Então é mais rápido. Escuto passos atrás de nós e a música que estranhamente voltou a tocar ficar distante.

-Frank, por favor! - Minha mãe implora. Nunca a vi assim.

Meu pai me joga dentro de seu escritório, e caio no tapete tão macio como minha cama. Ele não fecha a porta e vejo mamãe entrar junto com Louise e Arthur. Minha irmã está chorando, os lábios entreabertos, em choque.

-Papai, por favor. Não o machuque! - Louise pede. - Ele não fez nada! Ele já está completamente ferido, temos que levar Dale para o hospital!

Meu pai passa as mãos adornadas na barba bem feita, está tentando se controlar.

Onde Reside o Desejo (Concluído)Onde histórias criam vida. Descubra agora