4.

220 18 5
                                    

CHRISTOPHER

A conversa não saiu mesmo como o previsto. Kay ficou estranhamente irritada. Teria se incomodado com outra pessoa, além dela, dormindo na minha cama? Mas Kay nunca vem aqui. Odeia as paredes verde- escuras e os vizinhos idosos — entra no pacote de "você passa tempo demais com gente velha". A gente sempre está na casa dela (paredes cinza, vizinhos jovens e descolados).
    A briga termina com um impasse chato. Ela quer que eu desista e cancele com a mulher de Essex, mas não vou voltar atrás. Foi a melhor ideia que tive para conseguir dinheiro fácil todo mês. Também poderia ganhar na loteria, mas isso não conta como planejamento financeiro. Não quero voltar a pedir trezentas e cinquenta libras emprestado. Foi Kay quem disse: não era bom para nosso relacionamento.
   Ela chegou a esse ponto, então... vai mudar de ideia.

• • •

Noite vagarosa. Holly não conseguia dormir; jogamos damas. Ela balança os dedos sobre o tabuleiro como se estivesse lançando um feitiço antes de tocar em uma peça. Está fazendo jogos mentais, pelo visto — isso distrai a atenção do oponente da jogada seguinte. Onde uma menina de sete anos aprendeu a fazer jogos mentais?
Pergunto.

  Holly: Você é muito ingênuo, não é, Christopher?
Ela pronuncia "ingênio". Provavelmente nunca disse isso em voz alta, só leu em um de seus livros.
  Eu: Sou um homem experiente.
Obrigado, Holly!
Recebo um olhar condescendente.
  Holly: Tudo bem, Christopher. Você só é legal demais. Aposto que as pessoas pisam em você como se fosse um capacho. 

Ela ouviu isso em algum lugar, com certeza. Provavelmente do pai, que a visita a cada quinze dias, de terno cinza chique, trazendo doces ruins e o cheiro forte de fumaça de cigarro.

  Eu: Ser legal é uma coisa boa. A gente pode ser forte e legal. Não precisa ser uma coisa de cada vez.
Recebo outro olhar condescendente.
  Holly: Olha. É tipo... A Kay é forte, você é legal.
Ela abre as mãos, como se dissesse: é assim que o mundo funciona.

Fico surpreso.
Não percebi que ela sabia o nome da Kay.

• • •

Poncho liga bem na hora em que chego. Tenho que correr para atender o telefone fixo — sei que vai ser ele, sempre é — e bato a cabeça na lâmpada baixa da cozinha. Único defeito deste apartamento excelente.
  Esfrego a cabeça. Fecho os olhos. Ouço a voz de Poncho com cuidado, atento a tremores e pistas de como ele realmente está, e escuto um Poncho real, vivo, que ainda está bem e respirando.

   Poncho: Me conte uma história boa.
Fecho os olhos com mais força. Não foi um bom fim de semana para ele, então. Fins de semana são ruins — eles ficam mais tempo encarcerados. Sei que está desanimado por causa do sotaque, tão peculiar para nós dois. Sempre um pouco de Londres, um pouco do Condado de Cork, fica mais irlandês quando ele está triste.
Conto sobre Holly. Suas habilidades nas damas. A acusação de "ingenialidade". Poncho escuta.
  Poncho: Ela vai morrer?

É difícil.
As pessoas não percebem que não importa se ela vai morrer — cuidados paliativos não são apenas um lugar para onde as pessoas vão para partir lentamente. Tem mais gente que sobrevive do que morre no nosso setor. O importante é estar em um lugar confortável durante um período necessário e doloroso. Amenizar momentos ruins.
Mas Holly... Talvez ela morra. Está muito doente.
Linda, precoce e muito doente.

  Eu: As estatísticas para a leucemia são muito favoráveis para crianças da idade dela.
  Poncho: Não quero estatísticas, cara. Quero uma história boa.
Sorrio, me lembrando de quando éramos crianças e encenamos a trama de Neighbours durante um mês quando a TV quebrou.
Poncho sempre gostou de uma boa história.
Eu: Ela vai ficar bem.
Vai crescer e virar... programadora. Programadora profissional. Vai usar toda a técnica que tem no jogo de damas para desenvolver comidas geradas digitalmente, que vão acabar com a fome e tirar o emprego do Bono no Natal.
  Poncho ri. 

Não é uma grande risada, mas é o bastante para aliviar o nó de preocupação em meu estômago.
Silêncio por um tempo. Talvez tranquilo, ou apenas uma ausência de palavras expressivas para o momento.
 
Poncho: Isso aqui é um inferno, cara.
As palavras me atingem como um soco. Este ano, por muitas vezes, tive essa sensação, a de um punho fechado na barriga. Sempre em momentos como este, quando sou atingido de novo pela realidade, depois de dias tentando esquecer.
  Eu: Vai ter a audiência em breve. Falta pouco.
O Sal disse...
  Poncho: Ah, o Sal quer receber o dinheiro dele.
Eu sei quanto é, Chris. É impossível.
Voz pesada, lenta, quase arrastada.
  Eu: O que houve? Perdeu a fé no seu irmão mais velho? Você dizia que eu ia ser bilionário!
Ouço um riso relutante.
  Poncho: Você já fez muito.

Nunca. Impossível. Nunca vou fazer o bastante, não em relação a isso, apesar de ter desejado muitas vezes trocar de lugar com ele e tirá- lo de lá.

  Eu: Arranjei um esquema. Para ganhar dinheiro.
Você vai adorar. Tumulto.
  Poncho: Ei, cara, espere um pou...
Vozes abafadas. Meu coração dispara. Quando estamos ao telefone, é fácil pensar que ele está em um lugar seguro e tranquilo, apenas a voz dele e a minha. Mas ele está ali, em um pátio, à frente de uma fila, tendo que escolher entre usar a meia hora fora da cela para ligar ou aproveitar a única chance de tomar banho.
Poncho: Tenho que ir, Chris. Te amo.
A ligação cai.

• • •

Oito e meia de sábado. Mesmo saindo agora, vou me atrasar. E não vou sair agora, claro. Vou trocar lençóis sujos na Ala Dorsal, de acordo com a dra. Patel. De acordo com uma enfermeira da Ala Coral, vou colher sangue do sr. Prior. De acordo com Socha, a residente de primeiro ano, vou ajudar com um paciente que está morrendo na Ala Algas.
  Socha ganha.

Ligo para Kay enquanto corro.
  Kay atende: Você está preso no trabalho, né?
Sem fôlego para explicar direito. As alas são distantes demais para casos de emergência.
O conselho diretor da casa de repouso deveria investir em corredores mais curtos.
  Kay: Tudo bem. Eu recebo a moça para você.
Tropeço. Surpreso.
Tinha planejado pedir, claro — por isso liguei para Kay e não para a mulher de Essex para cancelar.
Mas... foi fácil demais.
Kay: Olha, não gosto da ideia de você dividir o apartamento, mas sei que precisa do dinheiro e entendo. Só que, para ficar tranquila com isso, acho que tudo tem que passar por mim. Vou encontrar essa tal de Dulce, cuidar de tudo e, assim, a mulher aleatória dormindo na sua cama não vai interagir com você. Com isso, não vou me sentir tão incomodada e você não vai ter que lidar com a situação. Até porque, vamos ser sinceros, você não tem tempo para isso.
Pontada de amor. Ou de dor nas costelas. Difícil ter certeza nesse estágio do relacionamento, mas mesmo assim.
  Eu: Você... tem certeza?
  Kay, firme: Tenho. Esse é o plano.
E nada de trabalhar no fim de semana, certo?
Os fins de semana são para mim.
Parece justo.
Eu: Obrigado. Obrigado mesmo.
E será que você pode contar a ela...
Kay: Tá, tá, vou falar do cara estranho do apartamento 5 e avisar sobre as raposas.
Pontada de amor, com certeza.
Kay: Sei que você acha que eu não escuto, mas escuto tudo.

Ainda tenho que correr mais um minuto para chegar à Ala Algas.
Não mantive o ritmo adequado. Erro de principiante. Estou tão abalado pela imediatez horrível deste turno, com tantas pessoas morrendo e escaras e pacientes dementes complicados, que esqueci regras básicas de sobrevivência em uma casa de repouso.
Ande depressa, não corra. Sempre saiba seus horários. Nunca perca a caneta.

Kay: Christopher?
Eu me esqueci de falar em voz alta. Só fiquei bufando. Provavelmente de um jeito meio sinistro.
Eu: Obrigado. Te amo.

PÓS-IT | Vondy - AdaptaçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora