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CHRISTOPHER

Pelo menos minha mãe acaba sendo uma distração para a lembrança dolorosamente incômoda desta manhã.
  Está fazendo um esforço incrível. E parece que estava dizendo a verdade sobre estar solteira — não há sinais claros de homem na casa (Poncho e eu aprendemos a identificá-los na infância), e ela não trocou de penteado nem de estilo desde a última vez em que a vi, o que significa que não está tentando se adequar aos gostos de outra pessoa.
  Falo com ela sobre Kay. É surpreendentemente bom. Ela assente nos momentos certos e dá tapinha na minha mão, ficando um pouco chorosa, depois me faz nuggets com batata frita, o que me dá a sensação de voltar a ter dez anos. Mas não é desagradável. É bom ter alguém cuidando de mim.
   A parte mais estranha é voltar ao quarto que Poncho e eu dividimos quando nos mudamos para Londres, na adolescência. Só voltei aqui uma vez desde o julgamento. Vim para ficar por uma semana depois disso; achei que minha mãe não seria capaz de lidar com aquilo sozinha. Mas não precisei ficar muito: ela conheceu Mike, que estava ansioso para ter a casa só para eles, então voltei para o apartamento.
   O quarto não mudou. Parece uma concha, só que sem o bicho dentro. Está cheio de buracos onde coisas deveriam estar: marcas de tachinhas de pôsteres tirados das paredes há muito tempo, livros caídos sem objetos por perto para ampará-los. As coisas de Poncho ainda estão encaixotadas, desde que os colegas de apartamento dele as deixaram aqui.
   Preciso de muito esforço mental para não revirar nada.  Seria desnecessariamente perturbador e ele odiaria.
Deito na cama e me pego voltando à imagem de Dulce — primeiro com a lingerie vermelha, depois entrando no quarto enrolada na toalha. A segunda imagem parece ainda mais inaceitável, como se ela nem soubesse que eu estava observando. Me remexo, desconfortável. É errado me sentir atraído por ela. Provavelmente é uma reação ao término com Kay.

Telefone toca. Pânico surge.
Confiro: Dulce.
Não quero atender.

Telefone toca, toca — parece não parar nunca. Ela desliga sem deixar recado. Me sinto estranhamente culpado.
Poncho disse que eu tinha que falar com ela. Mas prefiro silêncio a partir de agora ou, no máximo, um ou outro bilhete deixado na chaleira ou atrás da porta.
  Deito de novo. Penso sobre isso.
Me pergunto se é verdade. Telefone vibra.
Uma mensagem.

Oi. Então. Hum. Acho que a gente deveria conversar sobre hoje de manhã, não?
Bjos, Dulce

  A lembrança volta de repente e me pego grunhindo outra vez. Com certeza deveria responder. Solto o telefone. Encaro o teto.
O telefone vibra de novo.

Eu deveria ter começado com um pedido de desculpa. Era eu que não tinha que estar lá, de acordo com nossas regras de convivência.  E aí ataquei você no chuveiro. Então, sim, me desculpe!
Bjos

   É estranho, mas me sinto muito melhor depois dessa mensagem. Não parece que ela está traumatizada, e também soa bem como Dulce, então é mais fácil imaginar que essa mensagem vem da Dulce que eu tinha na cabeça antes de conhecer a verdadeira. Essa é meio... não irrelevante, mas está no "espaço seguro" da minha cabeça. Pessoa para conversar, sem pressão nem implicações. Fácil e sem exigências.
   Agora Dulce definitivamente não está em um espaço seguro da cabeça.
  Reúno coragem para tentar responder.

Não precisa pedir desculpa. A gente ia acabar se encontrando! Não precisa se preocupar — já esqueci.

Apago a última parte. Claro que não é verdade.

Não precisa pedir desculpa. A gente ia acabar se encontrando! Não precisa se preocupar — topo esquecer isso se você topar. Bjos, Christopher

Mando e me arrependo do beijo. Normalmente ponho um beijo?

Não lembro. Volto ao histórico das últimas mensagens e percebo que sou absolutamente inconsistente, o que deve ser a melhor resposta.
Deito de novo na cama e espero.
   E espero.

  O que ela está fazendo? Ela costuma responder rápido. Confiro o relógio — onze da noite. Será que pegou no sono? Acho que ela ficou acordada até tarde ontem. Mas, por fim:

Vamos esquecer isso! Prometo que não vai acontecer de novo (nem a intromissão NEM o atraso hoje). Espero que a Kay não surte por eu ter desrespeitado as regras do apartamento... E, tipo, ter atacado o namorado dela no chuveiro... Bjos

Respiro fundo.

Kay e eu terminamos duas semanas atrás. Bjos

Resposta quase instantânea.

Ah, merda, sinto muito. Achei mesmo que tinha alguma coisa errada — você pareceu muito quieto nos bilhetes
(mais do que de costume!). 
Como você está?

  Penso um pouco. Como estou? Estou deitado numa cama no apartamento da minha mãe, fantasiando sobre minha colega de apartamento nua, todas as lembranças da minha ex-namorada esquecidas, e de maneira genuína. Não deve ser totalmente saudável, mas... melhor do que ontem? Escolho dizer:

Melhorando. Bjos

  Longa pausa depois dessa mensagem. Me pergunto se deveria ter falado um pouco mais. Não que isso tenha desanimado Dulce antes.

Bom, talvez isto anime você:
por causa da ressaca, dei com a cara na impressora do trabalho hoje.

Rio. Um segundo depois, uma imagem de impressora surge. É enorme. Devem caber quatro Dulces nela.

Você não... viu?

Acho que perdi a capacidade de andar no momento crucial. Mas tinha acabado de terminar uma ligação com meu maravilhoso pedreiro que se tornou designer, então...

Ah. Você ainda devia estar nas nuvens.

Provavelmente! Foi um dia daqueles. Bjos

   Encaro a mensagem até a tela do telefone apagar. Um dia daqueles. Que tipo de dia? Dia de ficar nas nuvens? Mas por quê?... Porque ela...
   Não, não, não foi por minha causa. Isso é ridículo. Mas... O que ela quis dizer então?
Espero que a comunicação com Dulce não passe a ser assim a partir de agora. É exaustivo demais.

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