Circo dos Horrores

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[X-Mauro-X]

Eu e Leila estamos dentro de uma nave, sobrevoando Nova Recife. Vestindo um longo casaco negro de argolas altas, eu me encontro sentado no banco de passageiros que possui a forma de uma confortável poltrona vermelha acolchoada. Leila está sentada ao meu lado, lixando as unhas.

— Espero que esta viagem valha a pena, Leila — comento, deixando claro o meu descontentamento. — Sabe como eu odeio andar de nave.

— Você reclama demais, sabia? — exibe as unhas e as analisa. — Nem na hora de transar você tá relaxando mais. Dá um tempo e esfria um pouco essa cabeça.

— Você fala como se fosse fácil — cruzo os braços, começando a balançar uma perna. — O incidente com a Lilian Setenta e Quatro não sai da minha cabeça.

— A Francine vai dar cabo dela. Já tomamos essa decisão.

— Acha mesmo que a Francine vai dar conta?

— Mauro... — ela me olha profundamente. — Sério, esse teu pessimismo tá ficando chato já. Se não vai falar de outro assunto, tenta ficar quieto, pode ser?

Eu solto um bufo, franzindo a testa em desagrado. Minha perna balança mais e mais freneticamente. Ela tem razão, droga. Ando muito nervoso ultimamente, quase não conseguindo dormir direito. Duzentos anos vivendo uma vida de rei no pós-apocalipse nuclear e eu aqui reclamando como uma criança... Nem parece que passou tanto tempo. É como se as minhas memórias tivessem sido apagadas e substituídas ao longo do tempo. Levo a mão ao rosto e coço os dois olhos. Por que eu não consigo mais me acalmar como antes? Mesmo coisas simples estão ficando tão difíceis de aturar... O que está acontecendo?

Povo querido da minha cidade — ecoa um discurso de Luiz Garcia das inúmeras telas holográficas na cidade abaixo. Olho pela janela e vejo luzes e prédios passando como um oceano de estrelas. — Eu sei que muitos veem a Sagrada Missão como um sonho distante, e que a maioria de vocês não viverá suficiente para vê-la se tornar realidade, mas não temam! Eu, sua santidade Luiz Garcia, está lutando incessantemente para que essa realidade deixe de ser o futuro e passe a ser o nosso presente! Quando esse dia chegar, declararemos vitória... AO FORO DE SÃO PAULO!

Desvio o olhar da janela, soltando um bufo.

— Já tô ficando farto desses discursos...

Leila me ignora e segue lixando as unhas. Eu balanço a cabeça para os lados, perdido em pensamentos enquanto fico olhando para o piloto fazendo o seu trabalho. Sufocado... É assim como estou me sentindo. Estou constantemente sufocado por mentiras e fingimentos. Até quando isso, porra?! Ninguém consegue ser hipócrita a todo instante.

Alguns minutos passam, e nós finalmente chegamos ao destino.

A nave realiza um pouso seguro sobre a imensa pista daquele que um dia fora o Aeroporto Internacional de Recife. Agora, é o Ministério do Amor que eu carinhosamente apelidei de Circo dos Horrores. Não há definição melhor para isso desde que vi aquelas crianças com os olhos costurados recebendo tratamento de eletrochoque. O motivo daquilo? Prefiro nem tentar descobrir. Desde que Garcia ordenou que fossem feitos experimentos com crianças eu jurei nunca mais voltar aqui. Mas é claro que eu acabei quebrando essa regra. Sempre estou quebrando as malditas regras do sistema que eu ajudei a criar.

A porta deslizante da nave se abre para o lado automaticamente, então eu e Leila saltamos ao mesmo tempo, vislumbrando uma magnânima escultura arquitetônica e platinada recoberta de imensos janelões, janelões esses que estão circundados por faixas de luzes que formam um perfeito quadrado em seus contornos. O lugar em si lembra muito um grande shopping de antes da guerra durante o dia de inauguração, especialmente com os holofotes no teto emitindo diversas luzes para o céu, balançando para um lado e para o outro como mãe balançando um berço para o bebê dormir.

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