Sertão Devastado II

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[X-Lilian-X]

Eu, Calango Preto, Tião e Murilo Quatro. Quem diria que eu faria parte de um quarteto.

Todos nós caminhamos em linha reta pelo asfalto esburacado, passando ao lado de um caminhão sem carga tombado fora da estrada, em cima da terra árida e seca, onde alguns corpos robóticos jazem retorcidos, quase soterrados. O sol segue derramando um calor abrasador, de modo que frenéticas ondulações de ar ficam visíveis no horizonte.

É estranho vislumbrar o mundo em seu tamanho real, logo eu que fiquei toda a minha existência presa a minha própria programação, sempre recebendo ordens e obedecendo sem questionar. Agora que consegui livre arbítrio, tenho a oportunidade de traçar o meu próprio rumo sem medo de repreensão. Deixar os comunistas foi o mesmo que deixar todo o meu passado para trás em prol de encarar um novo presente. O que farei a partir de aqui será de minha responsabilidade apenas.

Vários metros à frente, eu avisto um mastro cinza sustentando uma placa holográfica de propaganda exibida no topo. A placa mostra o rosto de uma bela androide mulher de pele branca sob um fundo de quarto com cama de casal. A androide tem longos cabelos castanhos ondulados e sedosos, olhos verdes de pupilas brilhantes e lábios de batom vermelho mordendo levemente o dedo indicador em uma expressão de sensualidade. Na parte superior da placa está uma legenda escrita em grandes letras douradas: "Cansado da Sua Esposa? Assine o Divórcio e Compre Uma Androide Atriz Pornô". Na parte inferior direita da placa está destacada outra legenda: "Temos Também Versões Crianças Para Pedófilos".

Vejo o símbolo da IABRAS localizado no canto inferior do holograma: um homem prateado de braços e pernas abertas, imitando uma pose de estrela-do-mar, envolvido dentro de um círculo negro contendo o nome da empresa logo acima da cabeça do homem, e abaixo dos pés do homem está o slogan da empresa: "Sempre Com Você".

A IABRAS foi a pioneira no desenvolvimento de máquinas inteligentes dentro do Brasil após a nova constituição de 2034. Nesse período, também foi fundada a IA Redentora, empresa que criou a mim e os outros androides A74B. Claro, havia outras empresas de desenvolvimento de IA ao redor do mundo, como a Bot America nos Estados Unidos, a Yonah no Japão e o Grupo Santenali na Itália. Mas foi o Brasil que teve os maiores avanços na área, sendo o mais notável deles a criação dos primeiros androides autossuficientes a passar publicamente nos testes de Turing, em 2042. Dali em diante, a era das máquinas inteligentes havia começado.

Calango Preto, andando à minha direita, de repente foca os olhos na minha bochecha.

— Tião me contou que tu apertou o gatilho — quando ele diz, eu o encaro. — Mas como tu é androide, não deve saber como é perder alguém que ama... Não é?

Volto a olhar para frente, sem fazer expressão.

— Não — solto uma voz monótona e robotizada. — Eu não sei.

— Conta pra ela como foi que aconteceu, meu pai — ouço Tião atrás de mim. — Conta como a Janinha era uma doida inconsequente que só sabia fazer merda!

Já disse pra tu não falar assim da tua irmã!

— O senhor defende aquela tapada mesmo depois de morta, mas tem problema não — Tião aparece caminhando à minha esquerda, segurando o rifle de caça, tendo Murilo Quatro flutuando um metro acima de sua cabeça. — Eu conto pra Lilian como a Janinha chegou naquele ponto. Diferente do senhor, eu tenho nada a esconder de ninguém.

— Oh, menino — resmunga Calango. — Não piora a situação.

— Mas tem que falar a verdade, meu pai! Se a Lilian tá com a gente, ela precisa saber — Tião olha para mim. — Ela precisa saber a irmã lesada que eu tinha.

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