Liberdade é Escravidão

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[X-Mauro-X]

Não tive escolha exceto morar com eles. Ninguém me reconhece mais, nem os soldados, nem mesmo Edmundo Quarenta e Seis. É como se a minha identidade tivesse sido apagada para os outros, ou mesmo tiveram suas memórias alteradas. É loucura, mas não consigo imaginar outra explicação. Sinto-me um fantasma no meio dos vivos... Mas agora eu tenho uma chance que não posso deixar passar, a chance de descobrir o que realmente acontece, o que verdadeiramente é o comunismo na prática.

Pedro, Aline e Nanito ficaram muito felizes em saber de que ficarei com eles, em especial Aline. Era perceptível o brilho no olhar dela se unindo ao sorriso. Não resisti em sorrir também. Ela me faz lembrar a Leila quando ainda era adolescente, a típica magrinha de rosto bonito. Antes da guerra, tipos como ela atraiam muito poucos olhares masculinos. A maioria dos homens só tinham olhos para as androides sexuais de corpos esculturais, peitudas, bundudas e de rostos angelicais.

Passaram-se três dias desde que comecei a morar na casa de Pedro. No primeiro dia, eles ficaram me dando atenção o tempo todo, perguntando se eu precisava de algo ou se queria jogar conversa fora. Eu me senti um corpo estranho entre eles, como se fosse alguém acima deles hierarquicamente. De fato eu sou, mas agora estou tendo que viver como eles. O dia inteiro eu fiquei confuso e sem saber o que fazer. Por vezes me vi olhando para a parede, sem nenhuma expectativa. Senti o vazio preenchendo a minha alma.

Durante a noite, nós tomamos garrafas de soro de leite que, de acordo com Nanito, são distribuídos pacotes para a população de quinze em quinze dias. Literalmente era isso. Não existe nada para comer aqui. É só beber soro e ir para a cama. Todos os dias nós temos que beber soro e continuar existindo numa vida miserável. No quarto, precisei dormir na mesma cama de Aline. A cama era de solteiro, então precisamos dormir com os corpos quase colados um no outro. Senti um calor estranho nessa hora, e que me trazia grande nostalgia dos meus tempos com Leila. Pedro sempre costuma dormir em um colchão velho no chão, enquanto Nanito, por ser uma cafeteira robô, fica de vigília durante toda a noite.

No segundo dia, acordei com o trio reunido na sala, assistindo um vídeo de propaganda holográfica emitida pelo olho de Edmundo Quarenta e Seis. A propaganda mostrava ilustrações de pessoas trabalhando sorridentemente em meio a um cenário de fábrica, com a narração (que era o próprio Edmundo) repetindo o quão o socialismo é a coisa mais maravilhosa que existe. Senti vontade de vomitar.

Depois disso, nossa primeira tarefa do dia era conseguir um pouco de soro de leite a mais, já que eu ia fazer parte da família, e eles não tinham soro suficiente para dividir comigo. Então, eu e Pedro saímos às ruas, com o dia límpido e ensolarado. As pessoas andavam nas ruas apáticas, com olhar distante, carregando o peso de um mundo sem esperança. As conversas eram baixas e sussurrantes. Em alguns momentos, senti como se estivessem conspirando contra mim. Um mero delírio que mostrou o quão enlouquecedor é viver com olhos te vigiando o tempo todo.

Fui com Pedro até o centro da cidade, onde havia um grande ponto de distribuição de soro, localizado no que antes era a Praça do Marco Zero, um dos grandes pontos turísticos de Recife antes da guerra. Agora, a praça ganhou o nome Praça do Socialismo Sagrado. O lugar estava sempre cheio de pessoas, todas com o mesmo objetivo de obter soro, mas uma desconfiança pairava no ar. Podia sentir olhos hostis caindo sobre mim, e não eram de Edmundo Quarenta e Seis, apesar de os seus olhos estarem em todos os prédios e quarteirões.

Diversos corpos aglomerados estavam levantando as mãos para o alto, gritando para que os soldados lançassem os soros para eles. Pedro, que estava ao meu lado, também balançava as mãos para cima. Eu apenas fiquei olhando confuso e sem entender. Pareciam crianças desesperadas por atenção.

As garrafas de soro eram arremessadas e as pessoas se jogavam umas sobre as outras para tentar agarrar as garrafas. Uma dessas garrafas caiu diretamente na minha mão e várias mãos tentaram saltar para tirá-la de mim. Eu e Pedro tivemos que sair correndo, Pedro que também conseguiu pegar uma garrafa no ar. Voltamos para casa e ficamos a tarde inteira assistindo propagandas holográficas. O olhar deles sobre o holograma estava tão vidrado que pareciam robôs alienados. Durante a noite, eu bebi um pouco de soro, que literalmente tem gosto de água de esgoto, e fui dormir de novo na mesma cama junto com Aline. No meio da noite, fui acordado com um barulho vindo de fora. Quando fui olhar, vi dois drones carregando o corpo ensanguentado de uma criança. Um soldado havia explodido a sua cabeça, soldado esse que fazia parte da Polícia da Ideologia.

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