A viagem prossegue com um pouco mais de calmaria, agora com os olhos mais atentos aos arredores. Murilo preferiu não voltar mais a sintonizar em um sinal de rádio. No entanto, seus olhos continuam girando feito luz de farol.
Eu fui na contramão e decidi ativar o meu chip sintonizador para não ficar no tédio absoluto.
— Resistência — as trevizetes estão cantando. — Resistência! Resistência ao apocalipse! Resistir! À destruição! E lutar pela sobrevivência!
— E aqui estamos mais uma vez na rádio mais ouvida dos Ermos Nordestinos! Vamos lá! Vamos para as notícias! E começamos com... Oh, meu Deus, não temos nada de interessante acontecendo?! Bem, sendo assim, eu vou lhes contar mais uma história do nosso falecido e lendário mercenário, Gustavo Vinte e Sete, ele que foi a maior lenda a caminhar pelos Ermos Nordestinos. A história em questão ocorreu no ano 2270, quando Gustavo parou no assentamento de Barra Suave, no centro dos Ermos Alagoanos. Lá, o bom mercenário se deparou com um assentamento decadente, com moradores desesperançosos que estavam sendo ameaçados por um grupo de cangaceiros conhecidos como Motoqueiros Selvagens. Nome clichê da porra, é verdade, mas o nome em si fazia jus ao grupo, pois se tratavam de motos robôs que atropelavam todos que viam pela frente, fossem humanos ou androides.
Um falcão de duas cabeças passa voando muito acima de mim, batendo asas e grasnando um som rouco uérnnnnc!
— Gustavo Vinte e Sete, fodão do jeito que era, decidiu ele mesmo lidar com as motos robôs com o seu jeito foda de agir. Quando as motos finalmente apareceram durante a noite, Gustavo fez o impensável. Ele conseguiu saltar e montar em cima da moto líder, assumindo o controle da mesma e a usando para combater as suas motos companheiras. Gustavo, enquanto pilotava a moto líder, sacou um de seus revolveres calibre 69 e acertou em cheio nos pneus de cada moto, sem errar um único tiro no processo. No final, as motos ficaram totalmente imobilizadas no chão e assim Gustavo decidiu dar um final poético para a batalha, fazendo a moto líder atropelar os seus companheiros durante horas e horas até transformar todo mundo em sucata amassada. No final, Gustavo plantou uma bomba no corpo da moto líder, saltou para o chão e então BUMMMMMM!
Vejo Calango trocar uma garrafa de água com Chibata, que bebe um rápido gole e limpa a boca com a costa da mão. Tião cambaleia ao bater o pé numa pedra, sem chegar a cair. Murilo segue girando os olhos como um farol.
— Todo mundo do assentamento de Barra Suave agradeceu de joelhos o bom mercenário, alguns até chorando e soluçando aos seus pés em uma cena que quase me fez querer ser um humano para poder derramar lágrimas dos olhos. A partir disso, eles montaram um culto que louva o mercenário como uma espécie de divindade até os dias de hoje. Se isso agradou ou não o nosso mercenário fodão na época, nunca saberemos. Porém, o assentamento de Barra Suave se tornou um centro religioso no meio dos Ermos, acolhendo e ajudando outros indivíduos sempre quando possível. Tudo isso graças à ação do bom mercenário, que não cobrou uma única bateria e foi embora consciente de que salvou pessoas bondosas da morte certa. Hum... Contar essa história me fez pensar como será que o povo de Barra Suave reagiu quando eu noticiei a morte de Gustavo nas mãos do coronel Silva Torres, nos Ermos Pernambucanos... Bah! Prefiro deixar eles se foderem pra lá. Fiquem com um pouco de música!
A música começa com toques animados de trombetas e saxofones.
— Sim, eu me apaixonei — canta uma voz jovem e feminina. — Mas fui fundo e me magoei — destaque breve para as trombetas. — Mas a morte, quando chegar! Vai tentar nos levar ao deus! Ao deus que nos seeeeepaaaaaarooooou — mais destaque à parte instrumental. — Acreditei na palavra, mas me ferrei na bandeira! Mas eu não sabiiiiiiaaaaaa, não! Pensei que a morte era o fim, mas vi que era o meio — som de palmas acompanhando o ritmo ao fundo. — Não sei o que quis, mas eu peguei! Peguei tudo que eu tinha direito, enfim! Dinheiro e poder! Dei morte a mim! Aquele foi o meio de te separarem de miiiiiiiiiim!
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URCASUL - Entre Santos e Máquinas
Fiksi IlmiahEntre 2040 e 2050, o progresso tecnológico transformou o Brasil na maior potência na área de robótica e inteligência artificial de todo o mundo, ameaçando ultrapassar a economia dos Estados Unidos e da China em poucas décadas. Tal sonho foi desmoron...