Preparando Caminhos

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[X-Mauro-X]

— Povo querido da minha cidade — Garcia está fazendo mais um pronunciamento público dentro do estúdio de propaganda do Palácio Vermelho. Eu observo escorado ao lado da entrada do estúdio, com um cigarro aceso por entre os dedos, soprando fumaça do nariz. — Apesar das dificuldades na tentativa de cumprir a Sagrada Missão, estaremos sempre lutando pelo bem-estar de todos os cidadãos da pátria URCASUL, sejam humanos ou androides. Todos devem ser tratados com igualdade plena. A androide Lilian Setenta e Quatro sofreu um ataque cibernético covarde desses cristãos amaldiçoados que insistem em afrontar a nossa tão iluminada ideologia, causando danos severos no nosso palácio. Portanto, neste momento, a oração de vocês será essencial para nos dar força e determinação para avançarmos com os ideais socialistas!

Eu levo o cigarro à boca e chupo sua parte de trás, sentindo a fumaça penetrar os meus pulmões. Abaixo o cigarro e sopro fumaça da boca e dos buracos do nariz. Toda vez essa mesma conversa. Penso, com os olhos semicerrados para Garcia. As mesmas frases decoradas. Eu jogo o cigarro dentro de uma pequena lixeira aracnoide que está coletando lixo pelo corredor com suas mãozinhas metálicas, jogando-os para dentro de si em movimentos semelhantes a malabarismo. Por que tanta dificuldade em cumprir a Sagrada Missão? Eu sempre evitei pensar nisso, mas será mesmo que ela é real? Será por isso que a Lilian se rebelou contra nós? O que será que ela descobriu quando teve os arquivos internos recuperados? Por que é preciso eliminá-la invés de capturá-la para analisar suas memórias? Deve ter muita informação interessante que podemos usar a nosso favor...

Garcia continua a falar e gesticular para as câmeras em forma de olhos vermelho-brilhantes que o rodeiam, mas eu fico perdido em pensamentos e não mais presto atenção no que ele está dizendo, pois muitas de suas palavras já estão gravadas na minha memória de tanto que são repetidas.

O que você esconde, Garcia? Eu sei que nós vivemos com a estratégia de propagar mentiras contra os nossos inimigos, assim essas mentiras se tornarão verdades dentro do inconsciente popular, mas você nunca especificou como vai tornar a utopia comunista uma realidade, se é que vamos ter uma chance real de fazer isso.

Estamos estagnados na mesma situação há literalmente décadas e o único progresso relevante que tivemos foi a reconstrução das capitais nordestinas. Agora, parece que estamos entrando em um retrocesso contínuo. Não apenas estamos indo a lugar nenhum como não estamos fazendo nada para avançar em algo. No Ministério do Amor, Janus está fazendo experimentos sexuais com crianças outra vez, e para quê? Que avanço isso nos trará? Eu morro de nojo de quem pratica atrocidades com crianças, mas tenho sempre que me calar perante isso. Afinal, maldito é aquele que nos questiona, diz o filho da puta do Fujimori, que deu a própria filha para o Garcia estuprar e assassinar. Agora, a menina não passa de uma pilha de carne esquartejada dentro de uma caçamba.

— Isso é tudo por agora, irmãos e irmãs — Luiz Garcia finaliza o seu pronunciamento e dirige os passos para cá. Ao notar que estou observando perto da porta, ele para perto de mim com a postura ereta e as mãos unidas nas costas. — Tá fazendo o que aqui, Mauro? — ele pergunta num tom de quem vai me dar uma bronca severa. — Não tem nada melhor pra fazer além de ficar bisbilhotando? O que você quer?

— Tem uma coisa que eu gostaria de lhe perguntar, vossa santidade — começo entre suspiros, tentando esconder o nervosismo, mas o embrulho na barriga causa uma dor fria de aperto nos meus intestinos. — É sobre a Sagrada Missão...

— O que tem a Sagrada Missão?

Encaro profundamente os seus olhos cinza-escuros, procurando encontrar uma faísca de honestidade neles.

— A Sagrada Missão... — pronuncio num tom sério e hesitante. — Ela é real?

O guarda ao lado da porta vira os olhos esbugalhados para mim e rapidamente me aponta na cabeça com o fuzil de plasma. Os olhos de Edmundo fixam na minha direção, arregalados e perplexos. Três drones militares que passavam perto agora flutuam em volta da minha cabeça e formam um triângulo a minha volta, apontando as mãos de canhão laser para a minha cabeça. Eu não esboço nenhuma expressão de medo ou de surpresa, pois essa é sempre a reação deles para todos que ousam questionar a pureza do Santo dos Trabalhadores Oprimidos. Mas, por dentro, sinto as entranhas rodopiarem em um embrulho gélido e aguado.

URCASUL - Entre Santos e MáquinasOnde histórias criam vida. Descubra agora