CAPÍTULO 31

5 3 0
                                    

Helsinque, Finlândia. 1 ano antes.
A clínica estava alegre como sempre. A bandeira da Finlândia estava com a cruz nórdica azul e branca refletindo o orgulho no consultório.
Também, não era para menos, a doutora Alma estava examinando cuidadosamente os animais das crianças felizes da vila de Kuusijärvi.
Haviam gatos, pássaros, coelhos, hamsters, sem sinal de... deixa para lá...
A recente e precoce veterinária usava um jaleco, óculos de lentes redondas e seu penteado de toda a hora. Loiras marias chiquinhas.
Às vezes, ela tocava nas mãos dos pirralhos e as traziam até o peito dos seus bichos de estimação, para que assim, se sentissem parte da consulta.
Todos se divertiam muito e davam boas risadas, inclusive a médica, a qual perguntava insistentemente se os fedelhos estavam tomando conta direitinho de seus animais.
Isso até Björn chegar com seu cachorro.
Ele era um garotinho de cabelos ruivos, pele rosada e meio rechonchudo. Geralmente, carregando seu Labrador Retriever nos braços feito um filhote, entretanto contava com um porte médio, uma aparência musculosa e robusta. Sua pelagem era curta, densa e amarelada.
Alma rangia os dentes ao passo que seu rosto se contorcia inconscientemente, levando as crianças assustadas para a porta detrás do guri de rosto inocente. Elas odiavam Björn por deixar a doutora daquele jeito.
Assim que todas as crianças saíram juntas de seus animais, a garota esforçou-se para manter a positividade.
- Sem nunca se atrasar... Björn - Alma olhou para o relógio de ponteiros na mesa ao lado do calendário com datas importantes impressas. Marcava três horas da tarde.
A finlandesa dividia seu turno em dois. O primeiro para os animais normais e o outro para os cães. Alma falava que os cachorros eram especiais, por isso precisavam de um turno especial.
- Minha mãe disse para vir hoje de novo. Os remédios que você receitou não funcionaram.
Quem sabe hoje consiga curar esse bicho...
- Me dê ele aqui - disse a veterinária fazendo uma pose com os membros.
O pirralho colocou o animal nos braços de Alma, que fez uma cara de repulsa ao latido do bicho.
- Ele estava muito agitado hoje mais cedo, doutora.
- Ah, você sabe como esses animais são. Agressivos, te mordem, te arranhão, te transmitem raiva, leptospirose, sarna-
- Mas o Kasper não é assim. Eu o amo demais.
- Amor não vacina - Alma calou o guri com sua voz estridente e voltou a apalpar e vasculhar a pata do cachorro através de estetoscópios, termômetros, esfigmomanômetros... - Isso pode ser um pouco complicado... teria problema em você buscá-lo amanhã?
- É muito tempo sem ele... mas se for para ajudar acho que posso. É algo muito grav-
- Ótimo! Agora vá, tenho muito o que fazer - a garota tocou os ombros do menino e os conduziu apressada até a porta.
Logo que o barulho da portela se fechando terminou, Alma concedeu um sorriso delicado na direção do cão, o qual não encontrava-se mais na bancada de exame. Haviam se mudado para uma vasilha de água ali perto, a fim de beber o máximo possível, como se soubesse que passaria sede junto da doutora.
Oh céus, odeio tudo neles, até o jeito que bebem para se manterem vivos!
... Bem, isso explica o por quê eu sempre torcia para a Cruella matar os dálmatas.
Fora, existia um motivo específico para Alma escolher a medicina veterinária como curso na I.V.O., e isto era a eutanásia. Desde que aplicou sua primeira num cachorro durante sua prática, não conseguiu mais parar.
A finlandesa chegou até a comprar um consultório barato para esse propósito. Era repleto de equipamentos antigos, uma sala de cirurgia com mesas manchadas de sangue seco, uma área de cuidados intensivos com gaiolas enferrujadas e uma sala de banho com ganchos oxidados pendurados nas paredes. Lembrava um local de tortura, mas acabara por ser.
Desde aquele dia, o sangue canino fazia um rastro atrás da garota e sua agulha era o afluente. Entretanto, ela não parou nas eutanásias, principalmente quando descobriu o que poderia fazer com apenas a agulha da injeção.
No decorrer de partos de filhotes, Alma a usava para matar recém nascidos, penetrando sorrateiramente suas cabeças com o alfinete. Acabou por se tornar a maior serial killer de animais da Finlândia.
Todavia, dessa vez não era uma oportunidade muito favorável para matar. Porém, poderia-se fazer uma coisa melhor, cujo Björn, sua família e nem mesmo a justiça (o qual permanecia a tempos de olho nela, entretanto sem provar nada) conseguiriam contrariá-la.
À noite, Alma sorridente esticou suas luvas na frente do animal assustado, pronta para realizar o procedimento. Pensou perturbada.
Queria que meu pai pudesse me ver agora! Que nem quando ele viu que os cachorros haviam sumido e a culpa caiu sobre mim e minha mãezinha molestada...
Queria que ele pudesse ver o que eu faço com as criaturas que ele tanto amava... Amava até mais do que eu!

Num instante da manhã, o pirralho veio pegar seu cãozinho de volta.
A doutora o recebeu na entrada com toda a sua euforia, erguendo os braços retos para dentro fazendo sinal para ele adentrar. Sempre há lugar para mais um.
A sala de espera estava vazia. Cadeiras empoeiradas e livros sobre literatura viking criavam uma sensação de abandono pairando no ar.
Um dos punhos da finlandesa posicionou-se no dorso do garoto e o outro nas suas próprias costas, feito um mordomo. Alma o deslocou pelo pequeno corredor branco com paredes descascadas e manchadas pelo tempo.
Embora fosse dia encontrava-se apenas luz artificial, talvez pelo fato de que toda a edificação era vedada, com o argumento de que os cachorros precisam ficar separados, afinal eram "especiais".
Enquanto andavam, aos poucos Alma manifestava frases preocupantes como, "Fiz todo o possível" ou "Você estava certo em trazer ele até aqui, a infecção em suas patas piorou durante a noite, então... tive que tomar... medidas drásticas..."
A garota escancarou a maçaneta e destrancou a porta.
Em seguida, o que o menino viu lá dentro o deixou arranhando as bochechas por falta de compreensão.
- O Kasper - era incrível ela lembrar do nome - tentou fugir. Então tive que cortar suas pernas... - Ela sorriu e apontou para a plataforma onde estava o cão que nem aos menos lembrava o de antes.
O rosto de Björn tinha deixado toda pureza de lado e continha as lágrimas.
- Que vou fazer.... Alma?...
- O que vai fazer? Ele ainda é seu cachorro, só está um pouquinho diferente. Agora você não precisa ter mais medo de que ele se lance em correria e rache sua cabeça num muro. Ah! E precisa tirá-lo daqui logo para o turno da manhã.
O menino substituiu a tristeza por indignação.
- VOCÊ É LOUCA! Por que machucou o meu melhor amigo?! O que ele fez para você?!
De súbito ela sentiu algo que a tempos experimentava.
Culpa. Culpa. Culpa por ter feito outro ser vivo passar na pele o que ela passou. Cada vez que esse sentimento ia embora ela achava que teria um resultado diferente se tentasse de novo, no pior sentido da frase. Mas todos os seres humanos não pensam assim? Todos os seres humanos eram iguais ao pai dela, inclusive ela própria.
A culpa é, de certa forma, fantasmas que atormentam.
Uma característica Alma admirava nos animais que cuidava. A capacidade de aprender com os erros. Se um animal recebia um estímulo negativo, ele dificilmente voltava a fazer o que resultou esse estímulo. Mas não as pessoas. As pessoas não. Elas repetem os mesmos erros de sempre, independente das milhares de regras impostas, as quais os animais, inclusive, não tem.
Enfim, depois de matar o garoto, a doutora resolveu tirar umas férias em Sipoonkorpi, uma área de preservação natural a leste de Helsinque, com uma paisagem bem diversificada que incluía florestas e lagos.
Ela voltou à fase em que achava que teria um resultado diferente se tentasse de novo. Fazer o que? Era isso que a fazia se sentir uma pessoa.
Contudo, uma oferta poderia ser suficiente para fazê-la tentar de novo, no melhor sentido da frase.

Após uma pesca no gelo e se livrar de um pequeno cadáver em um pântano congelado, fazendo uma trilha difícil por entre a sanguinolenta neve espessa da mata, Alma retornou a sua cabana de descanso quando notou pegadas no solo que não eram dela, contudo, a veterinária destinou poucos alertas para as tais.
A luz dourada do sol se infiltrava por entre as árvores cobertas de neve. A choupana era feita de troncos de madeira robustos e se misturava perfeitamente com a paisagem. O telhado estava coberto de neve e as janelas adornadas com delicados flocos de gelo. Dentro havia uma atmosfera quente, criada pelo crepitar da lareira e o cheiro suave de lenha queimando. A mobília era de madeira sólida e coberta por pele de cachorros.
O silêncio era interrompido apenas pelo sussurro do vento e os ruídos sutis da vida selvagem.

4:00PM. Prontamente ela tirou sua jaqueta, luvas, botas, gorro e cachecol. Preparava-se para saborear sua sauna.
Introduziu-se no aposento da sauna, em companhia de um chapéu bobo. Seu saunahattu, feito de algodão e com um formato pontudo para proteger a cabeça do calor excessivo.
Uma névoa abrasiva espalhava-se para o resto do casebre mudo. O lugar era pequeno e a luz suave junto ao vapor dificultava a visão, porém, em meio a uma toalha em cima de um banco de madeira, ao lado de um balde de água fria, Alma pode enxergar uma folha, modestamente ressecada pelo fogão a lenha.
Tratava-se de um convite...

Ystería no Voo7300Onde histórias criam vida. Descubra agora