EPÍLOGO

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Um ano depois.

Estou deitada no sofá de couro, que chamo carinhosamente de sofisticado, da biblioteca de teto abobadado da mansão Riviere com um exemplar de Orgulho e Preconceito no colo, apertando os olhos há dez minutos para o mesmo parágrafo. Acabo de perceber que Astrid estava certa e que prefiro o filme por razões que nada têm a ver com o senhor Darcy caminhando no campo através da neblina. Ainda assim, parece um pouco mais agradável do que a loucura de pessoas rindo e crianças correndo no andar de baixo, de onde deliberadamente fugi para meu lugar favorito da casa quando ninguém estava olhando.

É aniversário de Amelia, mãe de Hardy, e, até a última vez que chequei, ela parecia radiante ao lado de Alexei, o namorado que conheceu no grupo de apoio. Desde que se divorciou do pai de Hardy, logo após o dia que presenciei aquela última briga na mansão tantos meses atrás, ela percorreu um longo caminho, se recuperando das feridas e do luto com a ajuda do filho, dos amigos e de muita terapia.

O pai de Hardy também havia aceitado tratamento para seu problema com álcool e estava limpo há meses, mas se afastou da família quando tudo o que fez o atingiu em cheio. Ainda levaria tempo para ele digerir toda a culpa, sabíamos, e Hardy estaria pronto para encerrarem o ciclo então.

Levanto os olhos da página quando ouço vozes alegres e desconhecidas no corredor. É a segunda vez que alguém se perde procurando pelo banheiro. A casa é grande o bastante para que isso aconteça várias vezes em um curto espaço de tempo.

Pelo amor de Deus, até vovô havia sido convidado e estava entretendo os convidados com histórias de quando serviu o país em algumas guerras. Ele nunca esteve em uma guerra e tenho certeza de que não sabe dirigir um tanque, como deu a entender, arrancando arquejos fascinados da plateia, porque, quando era jovem, dizia ser erudito demais para largar os livros e se alistar.

Hardy precisou se apoiar em mim de tanto rir quando muito discretamente expliquei a ele esse fato.

— E eu aqui com medo daquele taco de beisebol que ele deixa na sala por causa das suas histórias de senhor da guerra - ele cochichou de volta lançando um olhar admirado para o velho.

— Ah, isso com certeza você deve temer, se for esperto.

Depois disso, Hardy me deu um beijo demorado na bochecha e saiu com Tyler a reboque, e eu subi para a biblioteca. Naquele instante, contudo, admito que deveria ter me atentado aos sinais de alerta, conhecendo meu irmão pestinha e meu namorado que sempre cede aos pedidos traiçoeiros daquele gêmeo maléfico.

É apenas quando Hardy empurra as portas pesadas da biblioteca e me olha com olhos de cachorro que caiu da mudança que sei que algo deu errado. Principalmente porque Tyler, agarrado as pernas dele feito um carrapato, não me olha nos olhos.

Suspiro, fechando o livro.

— O que foi que vocês dois fizeram dessa vez?

Tyler, ligeiramente vermelho, é o primeiro a falar apontando um dedo para Hardy claramente decidido a trai-lo para salvar o próprio traseiro.

— Tecnicamente, foi ele. Eu só tava lá e o segui até aqui pra dar apoio moral. — Hardy, muito surpreso e magoado quando meu irmão se afasta, pronto para correr, fica mudo. — Sinto muito, amigo, mas ainda quero terminar o fundamental vivo.

Depois sai em disparada levando consigo a cabeleira castanho-mel, provavelmente à procura de Miles, o pacificador, para que eu não o castigue.

— Eu achei que tínhamos uma parceria — lamenta Hardy tardiamente observando, desconcertado diga-se de passagem, o local agora vazio que Tyler ocupava.

Reprimo uma risada e me sento no sofisticado, pensando em mil possibilidades, mas dou ao meu belo namorado um olhar encorajador carregado do benefício da dúvida. Não pode ser tão ruim.

Hardy aperta o dorso do nariz, meio sem saída — acho que está ficando histérico — e fala tão rápido que tenho dificuldade em acompanhar.

— Derrubamos o bolo da minha mãe na cozinha. E os convidados estão esperando. Não acho que dê para salvar parte alguma. Sabe, algum convidado trouxe um pastor alemão e ele parecia gostar muito de glacê. Que tipo de cachorro...

— Vocês o quê!?

Me levanto num pulo e o livro cai no chão. Céus. Não é ruim, é péssimo! O bolo deveria ter sido servido há dez minutos. Amelia vai ficar arrasada.

Ops, calma, querida. Vamos contar até dez, sim? Eu sou o seu amado. Respire.

Ele mal fala a última palavra, dando passos cautelosos para trás, antes que eu o alcance.

Hardy recua até suas costas baterem na parede, as mãos espalmadas na frente do corpo, e eu caio na gargalhada, esqueço de tudo, olhando para seu rosto.

— Você tem glacê. Aqui. — Aponto para sua bochecha salpicada de rosa sem me permitir imaginar como deve estar a cozinha de Amelia ou o pelo do pastor alemão e seja lá quem for seu dono. Esse deve ser o verdadeiro cenário de guerra que vovô descreveu.

É o suficiente para que Hardy aproveite o segundo de distração. Meu braço é puxado e mãos firmes agarram a minha cintura. Meu corpo fica todo colado no dele.

Seus olhos brilhantes são preenchidos por diversão. Sei o que está pensando só de olhar.

— Isso me lembra os velhos tempos.

— É mesmo? — digo também recordando da feira escolar quando me sujei de creme e ele pensou ter resolvido bem o problema. — Quando você me lambeu na frente de todo mundo?

Hardy bufa uma risada constrangida.

— Eu estava meio apavorado... — Ele arregala levemente os olhos revivendo o momento. — Não. Muito apavorado. Você parecia interessada em alguém, e eu não sabia o que fazer.

Dou um beijo rápido em seus lábios para tranquilizá-lo, ou talvez só porque posso e estou viciada. Funciona bem.

— Bom, resolveu. Me apaixonei por você naquela hora.

— Está falando sério?

Corro minhas mãos em seus cabelos, medindo o comprimento. Isso o faz perder o foco por segundos até que eu conclua a tarefa. Está mais longo que da última vez que nos despedimos. Quase sete meses atrás, cada um foi para a universidade em lados opostos do estado de modo que, a cada quinze dias ou quando não estamos em Cleveland em datas comemorativas, ele tem de dirigir quilômetros para me ver.

— Claro que não. Mas foi uma boa tentativa.

Hardy se prepara para me beijar e sei que vai esfregar glacê em mim só pela piscada maliciosa que me dá, inclinando a cabeça. Fecho os olhos e deixo mesmo assim.

Nada acontece. O batuque de saltos apressados quebra a expectativa.

— Aí está vocês! — Amelia guincha afobada com Alexei logo atrás, rindo muito de algo. — Precisamos de ajuda. Tem um pastor alemão enorme sujando os convidados de rosa e o bolo, céus, o bolo se foi!

Hardy e eu trocamos olhares cheios de significado segurando risadinhas confidentes. Discretamente limpo a bochecha dele antes de sairmos para ajudar na captura.

Contando Até DezOnde histórias criam vida. Descubra agora