O diário de Ulisses

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Sempre gostei de diários.

Desde quando aprendi a escrever, aos quatro anos de idade, tenho o gostoso hábito de escrever diário. Mas você... Com você vou fazer diferente. Há muito tempo atrás fui a um lugar que poderia ser chamado de paraíso. E com o meu amor secreto, (Mabel) vivi aventura inimagináveis.

Nunca contei isso a ninguém, e nem pretendo contar.

Eu amava Mabel. Continuo amando, mesmo tendo sessenta e tantos anos. Mas ela me ignorava como se ignora um inseto. Porém, numa tarde de chuva, descobri uma passagem no porão de casa. Isso mesmo, uma passagem, pequena, mas suficiente para um garoto franzino como eu passar folgadamente por ela. Foi o que fiz, e me espantei ao sair em uma cortina de folhas e cipós. Após sair daquele labirinto verde, meu queixo caiu. Eu estava em um mundo totalmente diferente daquele a que estava acostumado. Árvores, flores, frutos, todos diferentes dos que estava acostumado a ver, pegar, cheirar, sentir ou comer. Uma enorme cachoeira (acho que tinha mais ou menos uns cinquenta metros de altura) caía elegantemente em um rio largo, fundo e muito caudaloso. No começo, pensei em me jogar no rio e tomar banho na cachoeira. Mas pensei melhor e resolvi voltar. Peguei uma flor amarela, procurei a cortina de cipós e retornei para casa. Ao chegar, meu espanto foi tão grande que deixei a pobre florzinha cair no chão. No porão, havia um relógio velho, porém que mostrava a hora correta. Eu olhara bem na hora que fui, e tinha certeza que havia passado mais ou menos meia hora fora. Mas o relógio continuava a mostrar a mesma hora. Limpei o porão e subi. Mamãe ainda estava fazendo torta de maçã, papai continuava a regar o jardim...

Passados alguns dias, tomei coragem e contei a Mabel. Ela me julgou louco. Não disse nada, somente puxei-a pelo braço e a arrastei ao porão. Empurrei as caixas e baús e mostrei-lhe o buraco. Ela deu um gritinho de espanto e abaixou-se para olhar. Não viu nada, é claro, a cortina de folhas tampava tudo. Passei na frente dela, que me seguia pelo túnel lentamente. Parei, para desenroscá-la dos cipós. Assim que eu afastei as folhas, ela abriu a boca. Ali estava, a cachoeira intocada, as árvores, alguns pássaros comendo as frutas, as flores... Tudo como eu havia deixado.

Mabel logo subiu em uma árvore e pegou uma fruta do tamanho de um mamão. Tirou-lhe a casca e deu um olhar de satisfação. Era uma manga, a maior que se consiga imaginar; tão doce que os dentes de Mabel logo ficaram dormentes. Mas eu não fiquei para trás, pegando uma também e fincando os dentes com vontade na fruta. Comi até me fartar, indo depois me lavar nas águas geladas do rio. Mabel me agradeceu por levá-la até aquele lugar maravilhoso.

Daquele dia em diante, assim que terminávamos de fazer os deveres de casa, eu e Mabel íamos para o paraíso. Mas não ficamos somente naquele pedaço de terra. Esquadrinhamos aquele território inteiro, de uma ponta a outra, sabíamos de cor e salteado todos os melhores esconderijos dali. Descobrimos que não era apenas floresta e mato e animais e tudo de belo. Havia pessoas morando ali.

Foi numa tarde chuvosa. Eu e Mabel íamos pela trilha e ouvimos gritos. Corremos na direção de onde vinham e encontramos uma mulher, de blusa branca manga longa, calça caqui, dentro de um buraco.

- Socorro! Tirem-me daqui!

Rapidamente, cortei um cipó com o canivete e joguei para dentro do buraco, de onde saiu à mulher, que não era tão velha assim. Devia ter uns vinte anos, cabelos castanhos e olhos azuis. Alijava na cintura, arco na mão e perguntou quem éramos. "Somos apenas garotos" disse Mabel. Ela se apresentou, nos cumprimentando e dizendo o seu nome: Luz.

Ela me deu um baú que estava escondido no oco de uma árvore e mandou que eu voltasse rapidamente para casa, pois iriam acontecer coisas ali que não eram próprias para os olhos de uma criança. E eu acreditei quando ouvi o tropel de cavalos. Corri o mais rápido que pude para a cortina de folhas e me arrastei atrás de Mabel, que estava ofegando. Ao sair, rapidamente abrimos o baú: um mapa!

"Kim, o mundo perdido" pronunciei encantado. Mabel o examinou de uma ponta a outra e disse:

"Prometa que não vamos voltar lá novamente."

O quê!? Logo agora que consegui o mapa?

"Fique se quiser. Eu vou."

Ela subiu as escadas correndo e foi para casa.

No outro dia, quando desci ao porão, quase desmaiei. No lugar da entrada pra Kim, uma parede construída recentemente, com uma camada reforçada de tijolos. Sentei-me e comecei a chorar. Um choro de desespero, de tristeza, de raiva. Tudo culpa de Mabel. Ela contara aos meus pais. Acabou o sonho de Kim. Acabou.

Sam, a assassina do mundo perdidoOnde histórias criam vida. Descubra agora