Fogo

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— Vou chamar a polícia para denunciá-la — disse minha mãe pela quarta vez. Estávamos sentadas na sala havia mais de meia hora. — Pelo menos, deixem que eu vá lá gritar com ela.

— Não vai adiantar — disse Amity. Ela falava como se quisesse morrer.

— O que podemos fazer? — perguntei. — Tem que ter alguma coisa...

— Não. — Ela se levantou do sofá. — Vou voltar para a faculdade.

— O quê? — Eu me levantei também e a segui porta afora. — Espera, você não pode passar o Natal lá, sozinha!

— Não quero ficar perto dela.

Todas ficamos em silêncio por um instante.

— Olha... — continuou ela — quando meus irmãos tinham dez anos... nossa mãe queimou um monte de roupas que eles  tinham comprado em um brechó. Emira estava muito, muito feliz com uma calça que ela tinha comprado para usar quando saísse com as amigas dela... tinha estampa de galáxias e Edric tinha comprado um casaco com vários animais bordados... Mas nossa mãe disse que as roupas eram horrorosas e simplesmente as pegou e queimou no jardim enquanto eles gritavam e choravam. Edric tentou tirá-las do fogo, mas Emira queria impedir ele tentando ela mesma. Os dois queimaram as mãos, e minha mãe nem os reconfortou. — Os olhos dela estavam inexpressivos, como se não existisse nada dentro deles. — Eu tive que... tive que segurar as mãos deles sob a água gelada...

— Meu Deus — falei.

Amity olhou para o chão e passou a falar mais baixo.

— Ela podia ter jogado as roupas fora, mas decidiu queimá-las...

Minha mãe e eu passamos mais quinze minutos tentando fazer com que ela mudasse de ideia e ficasse, mas ela não quis.

Ela estava indo embora.

De novo.

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Eram quase 21h quando Amity e eu voltamos para a estação. Apesar de eu tê-la encontrado apenas duas horas antes, parecia que já fazia dias.

Nós nos sentamos em um banco. A zona rural se estendia à nossa frente, com o céu escuro de inverno.

Amity levantou as pernas de modo a flexionar os joelhos e acomodar os pés em cima do banco. Começou a mexer as mãos.

— Está bem frio no norte — disse ela, e então estendeu as mãos à minha frente. A pele de seus dedos estava toda seca. — Olha.

— Mãos enferrujadas do norte — falei.

— O quê?

— É o que minha mãe diz. — Acariciei a pele seca dos dedos dela com um dedo. — Quando a pele da mão fica toda seca. Mãos enferrujadas do norte.

Amity sorriu.

— Acho que preciso comprar luvas. Eu as usaria o tempo todo.

— Como Hecate.

Em Boiling Isles, Hecate nunca tira as luvas. Ninguém sabe por quê.

— É. — Ela encolheu as mãos e passou os braços ao redor dos joelhos. — Às vezes eu acho que sou Hecate.

— Quer minhas luvas? — perguntei, de repente, e tirei as que usava. Eram de tricô azul-marinho com uma estampa em ponto cruz. Eu as ofereci a ela. — Tenho montes de luvas.

Ela olhou para mim.

— Não posso roubar as suas!

— Elas já estão bem velhas. — Era verdade.

Em busca de Hecate Onde histórias criam vida. Descubra agora