O Limite da Fé

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Capítulo 2

A chuva caía pesada sobre o telhado da igreja naquela noite, tamborilando com um som constante e abafado. O vento frio sibilava pelas frestas das janelas e fazia as velas tremerem, projetando sombras dançantes nas paredes. O Padre Charlie estava ajoelhado diante do altar, os olhos fixos na cruz dourada, os lábios murmurando orações enquanto seu coração parecia travar uma luta silenciosa. Havia algo errado – ou melhor, havia algo profundamente errado com ele.

Desde a última confissão de Clara, uma inquietude se instalara em seu peito. Por mais que rezasse, jejuasse e se dedicasse ao trabalho na paróquia, não conseguia afastar a imagem dela de sua mente. Era como se o perfume doce que ela usava ainda estivesse impregnado no ar, como se o som de sua voz suave e provocativa continuasse a ecoar pelos corredores da igreja. E o olhar... aquele olhar atrevido que parecia enxergar além de sua batina e expor sua vulnerabilidade, continuava a assombrá-lo, desafiando suas convicções.

Naquela noite, ele decidiu prolongar suas orações, buscando no silêncio do templo um alívio para sua alma atribulada. Mas a paz que ele tanto desejava parecia sempre fora de alcance, e sua fé inabalável agora mostrava fissuras preocupantes.

Quando ele se levantou para apagar as velas, o ruído distante de passos ecoou pela igreja. O som o fez congelar por um instante. Era tarde, e a igreja já estava fechada. Ninguém deveria estar ali. Mas logo reconheceu o ritmo firme dos saltos. Clara.

Ela se aproximou do altar com uma calma perturbadora, como se o lugar sagrado fosse apenas mais um cenário para suas provocações. Vestia um longo casaco negro, que abria levemente com o movimento, revelando o vestido vermelho que usara na missa mais cedo. Um vermelho profundo, como o vinho derramado durante a Eucaristia. O contraste era marcante, quase blasfemo. Clara não pertencia àquele ambiente de santidade, e, no entanto, ali estava ela, como uma tentação viva e pulsante, desafiando-o a resistir.

“Padre,” ela o cumprimentou com um sorriso no canto dos lábios. “Ainda acordado a essa hora?”

Ele apertou os lábios, tentando disfarçar a tensão. “Clara, a igreja já está fechada. Você não deveria estar aqui.”

Ela caminhou até o altar, deslizando os dedos pela madeira polida. “Eu precisava falar com o senhor. Algo que não podia esperar.” Seu tom de voz era suave, mas o olhar queimava com uma intensidade perigosa.

“Isso não é apropriado,” ele insistiu, desviando o olhar. “Se precisa confessar algo, deve fazê-lo durante o horário de confissões.”

“Mas a confissão não é sempre que a alma está aflita?” ela rebateu, dando mais um passo em sua direção. “E a minha alma está sempre aflita, Padre. Como pode negar a um fiel o conforto das suas palavras?”

Charlie sentiu o suor frio em sua nuca. As palavras dela, carregadas de duplo sentido, perfuravam suas defesas. “Deixe-me ajudar, então,” disse, tentando recuperar a compostura. “Seja o que for, Deus é misericordioso e há perdão para todos os pecados.”

Clara sorriu. “E para os seus, Padre? Há perdão?”

Ele sentiu o golpe. Por um momento, o silêncio pairou pesado no ar, apenas quebrado pelo som da chuva lá fora. Ele não sabia como responder. Nunca imaginara que um dia seria colocado naquela posição – um sacerdote questionando sua própria pureza, suas próprias intenções. Por mais que resistisse, a atração por Clara parecia ter se enraizado em sua alma, desafiando tudo o que ele acreditava.

“Eu... não entendo o que quer dizer,” ele respondeu, hesitante.

Ela riu baixinho, o som reverberando pelo espaço sagrado. “Ah, entenda sim. Posso ver nos seus olhos, Padre Charlie. Está escrito neles. Você me deseja, e está tentando lutar contra isso.” Ela deu mais um passo, aproximando-se o suficiente para que ele sentisse o calor do corpo dela. “Mas por que lutar contra algo que é natural?”

Charlie deu um passo para trás, o coração acelerado. “Isso é uma tentação, Clara. Não podemos...”

“Não podemos o quê?” ela o interrompeu, com uma voz quase sussurrada. “Ser humanos?”

As palavras dela cortaram fundo. Por um instante, ele se viu hesitando, o olhar perdido no dela. Não sabia mais se o que sentia era desejo ou apenas um reflexo de uma vida de renúncias e privações. Seus anos dedicados à fé haviam o ensinado a combater as fraquezas da carne, mas agora, diante daquela mulher, todas as certezas pareciam se dissolver.

“Clara,” ele começou, quase implorando, “não é certo. Isso é...”

“Pecado?” ela completou por ele, com um sorriso que mais parecia um desafio. “Mas e se eu te dissesse que o pecado pode ser libertador?” Ela inclinou a cabeça, os olhos ainda fixos nos dele. “Você não está cansado de se esconder atrás da batina, Charlie? De fingir que é imune a tudo isso?”

Ele sentiu um calor crescente subir por seu corpo. A forma como ela o chamara pelo nome, sem o título, soava como uma invasão em sua identidade mais profunda. Não era apenas o sacerdote que ela desafiava, mas o homem por trás do manto, aquele que raramente deixava vir à tona.

Sem saber como responder, ele se virou, caminhando apressadamente para a sacristia. “Preciso pedir que vá embora, Clara,” disse, a voz falhando levemente. “Por favor, não volte aqui a essa hora.”

Clara permaneceu onde estava, observando-o com um brilho nos olhos que mesclava divertimento e curiosidade. “Como quiser, Padre,” ela respondeu finalmente. “Mas saiba que voltarei. Sempre volto.”

Com essas palavras, ela se virou e saiu, deixando o som de seus passos e o perfume adocicado desaparecerem na escuridão do corredor. Quando a porta principal se fechou, Charlie se viu sozinho mais uma vez, o silêncio voltando a dominar o ambiente.

Ele se deixou cair de joelhos novamente, as mãos unidas em oração, mas desta vez suas palavras não tinham a mesma força. Algo estava se quebrando dentro dele, algo que ele não sabia se conseguiria reparar. Aquela batalha entre a devoção e o desejo, entre o santo e o profano, parecia destinada a se intensificar. E, embora ele soubesse o caminho que deveria seguir, começava a se perguntar se tinha forças para resistir.

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Neste capítulo, a ideia é aprofundar o conflito interno do Padre Charlie e mostrar que, apesar de seu esforço, a presença de Clara exerce uma influência cada vez maior sobre ele. A provocação dela continua sendo um elemento central, que ajuda a expor as fissuras na fé do padre, preparando o terreno para os capítulos seguintes.

Entre o Céu e o Inferno| FATHER CHARLIEOnde histórias criam vida. Descubra agora