Entre o Céu e o Inferno

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Capítulo 3: Entre o Céu e o Inferno

O céu cinzento parecia prenunciar o turbilhão que se aproximava. Os sinos da igreja de São Miguel soavam melancólicos naquela manhã, ressoando pela pequena cidade como um lamento distante. Padre Charlie caminhava pelo jardim da paróquia, a mente pesada e o corpo exausto. Não conseguira dormir. As palavras de Clara continuavam a ecoar em sua mente como um mantra subversivo: “Você não está cansado de se esconder atrás da batina, Charlie? De fingir que é imune a tudo isso?”

Ele havia sido ordenado com um propósito claro: servir a Deus, orientar os fiéis, resistir ao pecado. Mas agora, todas as suas convicções pareciam estar sendo postas à prova, como se o próprio Diabo tivesse decidido testá-lo através daquela mulher. Ele tentava se convencer de que aquilo era apenas uma provação – uma dessas dificuldades que os santos enfrentavam em sua caminhada. E no entanto, a cada dia que passava, a imagem de Clara invadia seus pensamentos com mais frequência e força.

Naquela manhã, após o término da missa, ele foi surpreendido por uma visão inesperada: Clara estava novamente sentada no último banco, como costumava fazer nas semanas anteriores, mas desta vez parecia diferente. Seus olhos, que normalmente irradiavam uma confiança quase impertinente, estavam marejados, e suas mãos tremiam levemente sobre o colo. Assim que os outros fiéis deixaram a igreja, ela permaneceu, o olhar fixo no altar.

Charlie hesitou por um instante, mas a inquietação que sentiu foi mais forte. Aproximou-se dela, tentando ignorar o aperto no peito. “Clara, está tudo bem?”

Ela levantou o olhar para ele, e havia algo de diferente em sua expressão. Não era o usual desafio ou provocação, mas uma vulnerabilidade que ele nunca havia presenciado. “Padre, eu... preciso de ajuda,” disse ela, com a voz trêmula. “Desta vez, não é uma brincadeira.”

A confusão tomou conta de Charlie, mas ele manteve a calma. “O que aconteceu?”

Clara respirou fundo, e seus olhos se encheram de lágrimas. “É o meu irmão... ele se envolveu com gente perigosa. Há dívidas, ameaças. Eu... eu não sei mais o que fazer.” A dureza habitual de sua voz se desfez, revelando um medo genuíno.

Ele sentiu um misto de alívio e culpa. Alívio por ver que a razão de sua visita não era mais uma provocação, mas também culpa por ter assumido o pior sobre ela. Sem hesitar, ele estendeu a mão e tocou levemente o ombro de Clara, como se aquele simples gesto pudesse oferecer algum consolo. “Clara, Deus não nos abandona nos momentos de desespero. Ele está sempre presente para aqueles que buscam sua ajuda. Deixe-me rezar com você, para que encontre forças e uma solução para o seu irmão.”

Ela assentiu, enxugando as lágrimas, e o seguiu até o altar. Juntos, ajoelharam-se, e ele começou a orar, pedindo a intercessão divina para trazer paz e segurança à vida de Clara e de seu irmão. Enquanto pronunciava as palavras sagradas, ele sentiu o peso de sua presença ao lado, uma proximidade que trazia não apenas conforto, mas também perigo. Ele deveria se concentrar apenas na oração, mas sua mente se distraía com o calor do corpo dela tão próximo ao seu.

Quando terminou a oração, Clara levantou o rosto para ele. Havia uma nova expressão em seus olhos – uma mistura de gratidão e algo mais, algo que parecia um eco distante dos sentimentos que ela demonstrara antes. “Obrigada, Padre,” ela murmurou, “mas... há algo mais que eu preciso confessar.”

Charlie hesitou. “Sim?”

Ela se aproximou mais um pouco, reduzindo a distância entre eles. “Por que você é tão bom comigo?” perguntou, a voz suave, quase sussurrando. “Eu sinto que não mereço sua bondade... e às vezes, isso me faz querer...”

“Clara,” ele a interrompeu, mas sua voz soou fraca. “Não devemos confundir os sentimentos. Você está passando por um momento difícil. Não permita que isso a leve a buscar conforto onde não deveria.”

Ela olhou para ele, e sua expressão se tornou mais intensa. “E você? Está tão certo de que não sente nada por mim, Padre?”

As palavras dela caíram sobre ele como um golpe. Sentiu o coração acelerar e o suor brotar nas mãos. Queria negar, queria afastá-la e afirmar sua fé, mas a verdade era que a dúvida havia se enraizado em sua alma. A proximidade de Clara, seu cheiro doce, sua voz – tudo contribuía para alimentá-lo com um desejo que ele lutava desesperadamente para reprimir.

Charlie levantou-se, quebrando o contato visual e se afastando. “Clara, vou pedir que vá embora por hoje,” disse, tentando manter a compostura. “Este não é o momento certo para isso. Você precisa cuidar de seu irmão e... eu preciso rezar.”

Ela se levantou lentamente, com uma expressão de decepção e dor. “Como quiser, Padre,” disse, com a voz fria. “Mas saiba que um dia você vai ter que decidir. Não pode viver para sempre entre o céu e o inferno.”

Ela se virou e saiu, deixando a igreja em um silêncio inquietante. Charlie ficou parado por alguns minutos, tentando organizar seus pensamentos. Sua alma parecia estar em chamas, e ele sabia que precisava agir rápido para extinguir o incêndio que crescia em seu coração. Mas a luta se tornava mais difícil a cada dia.

Ele se dirigiu ao altar, ajoelhou-se e começou a orar com fervor. Sentia que precisava se reconectar com Deus, renovar seu compromisso com a fé e reforçar suas barreiras contra as tentações que rondavam sua vida. Mas por mais que rezasse, a figura de Clara insistia em surgir em seus pensamentos, como uma sombra que se recusava a ser banida pela luz.

Charlie sentiu que estava em um caminho perigoso. Havia algo na luta contra o desejo que tornava o pecado ainda mais atraente. E a verdade cruel era que, apesar de todas as suas preces e penitências, ele já não tinha certeza de para onde sua alma estava sendo conduzida – se para o céu que sempre buscara, ou para o inferno que começava a parecer inevitável.

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Neste capítulo, aprofundei o dilema emocional e espiritual do Padre Charlie, colocando-o em uma posição de maior vulnerabilidade, enquanto Clara continua a desafiá-lo de maneiras novas e inesperadas.

Entre o Céu e o Inferno| FATHER CHARLIEOnde histórias criam vida. Descubra agora