O Abismo da Alma

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Capítulo 4:

Os dias que se seguiram foram um turbilhão de inquietação para Padre Charlie. Cada momento em que se dedicava ao seu serviço na paróquia era um esforço consciente para reprimir as emoções que se acumulavam dentro de si. Ele se jogou de cabeça em cada tarefa – desde a celebração das missas até a visita aos enfermos – na esperança de que o cansaço físico e o rigor espiritual pudessem apagar a lembrança constante de Clara. Mas a imagem dela, a intensidade do olhar e o sussurro tentador, permaneciam gravados em sua mente, desafiando sua fé e a solidez de seus votos.

Naqueles dias de conflito interno, ele se sentia como uma marionete dividida entre duas forças opostas. De um lado, o dever para com Deus e sua congregação, o chamado que sempre o guiou para servir. Do outro, uma atração poderosa e inesperada por Clara, que parecia se tornar mais forte a cada instante. Ele confessava seus pensamentos ao crucifixo no altar, esperando que o silêncio de Deus fosse uma forma de perdão. No entanto, mesmo em oração, sentia que a batalha estava sendo travada muito além das palavras – era uma luta de carne, de desejo e de alma.

Na tarde de sexta-feira, enquanto se ocupava arrumando os bancos da igreja após a missa, ouviu o eco de passos na entrada. Um frio repentino percorreu sua espinha. O som era inconfundível, como se já estivesse gravado em sua memória. Ele se virou e, como temia, lá estava Clara, parada sob o arco da porta, o rosto iluminado pela luz que entrava de fora. Seus olhos brilhavam com aquele misto de doçura e provocação, e ela carregava um pequeno buquê de flores em uma das mãos.

“Padre, espero não estar interrompendo nada importante,” disse ela, em um tom suave, mas carregado de malícia. “Trouxe flores para a Virgem.”

Charlie endireitou a postura e respirou fundo, buscando encontrar o equilíbrio em meio à perturbação que a presença dela sempre causava. “Não há interrupção,” ele respondeu, com um tom que se esforçava para ser cordial, mas que traía a ansiedade que crescia em seu peito. “A igreja está aberta para todos.”

Ela caminhou em direção ao altar lateral, onde havia uma imagem da Virgem Maria. Seus passos eram lentos, quase deliberados, e o som de seus saltos ecoava pelas paredes da igreja. Quando chegou ao altar, colocou as flores diante da imagem e se virou para olhar Charlie. Seus olhos o observaram com uma intensidade que parecia perfurar as camadas de controle que ele tentava erguer em volta de si.

“O senhor está sempre tão sério, Padre,” disse ela, com um sorriso nos lábios. “Às vezes me pergunto se um pouco de alegria não faria bem à sua alma.”

“Minha alegria vem de servir a Deus e ajudar aqueles que precisam,” ele respondeu, tentando manter o tom formal.

Ela arqueou uma sobrancelha e deu um passo em sua direção. “E acredita mesmo que isso é o suficiente? Que basta seguir todas as regras para ter uma vida plena e significativa?”

Charlie sentiu o peso da pergunta dela, como se não fosse apenas uma provocação, mas um questionamento profundo que alcançava algo em seu interior que ele não estava pronto para encarar. “A verdadeira plenitude está na fé,” ele afirmou, com uma firmeza que tentava convencer a si mesmo tanto quanto a ela. “Ela nos guia para além das tentações e nos dá a força para resistir ao que é mundano.”

Clara sorriu com uma leve inclinação de cabeça, como se estivesse ouvindo uma criança a justificar um erro. “Se a fé é tão poderosa assim, então por que parece tão atormentado, Padre?” Ela se aproximou ainda mais, reduzindo a distância entre eles a poucos passos. “Por que o vejo lutando para encontrar as palavras certas sempre que estou por perto?”

Charlie deu um passo para trás instintivamente, sua respiração tornando-se pesada. “Clara, você está confundindo as coisas,” ele disse, com um tom que beirava o desespero. “Este lugar é sagrado. Suas insinuações não têm cabimento aqui.”

Ela não recuou; pelo contrário, seus olhos cintilaram com um brilho desafiador. “Não são insinuações, Padre. São verdades que talvez você não esteja disposto a enfrentar.” Ela deu mais um passo à frente, e agora a distância entre eles era quase inexistente. “Você pode tentar me afastar, pode rezar para Deus, mas a verdade é que a dúvida já está em seu coração. E uma vez que ela se instala, não há como voltar atrás.”

As palavras de Clara caíram sobre Charlie como um golpe. Ele sentiu um calor subir pelo rosto, uma mistura de raiva e vergonha por ser confrontado daquela forma, tão diretamente. Sem conseguir suportar o olhar penetrante dela, ele desviou os olhos para o chão, apertando as mãos com força. “Você deveria ir embora,” ele murmurou, a voz tremendo de tensão. “Você não deveria estar aqui.”

Clara soltou um leve suspiro, mas não se moveu imediatamente. “Está bem, Padre,” disse ela, depois de um instante. “Eu vou embora. Mas a pergunta que você precisa se fazer é: quantas mais vezes terei que ir embora porque não consegue se controlar em minha presença.?”

Com essas palavras, ela se virou e começou a se afastar. Charlie a observou sair pela porta, o som de seus passos desaparecendo lentamente. Quando ela se foi, o silêncio na igreja pareceu mais opressor do que nunca. O padre caiu de joelhos diante do altar, sentindo o peso de sua culpa e o vazio que tomava conta de seu espírito.

Desta vez, suas orações não foram dirigidas apenas a Deus, mas a ele mesmo – como se estivesse implorando por forças para resistir à queda iminente. Tentou formular as palavras certas, mas tudo o que conseguiu foi o som de sua respiração ofegante. E enquanto se ajoelhava ali, sozinho, uma dúvida se insinuava em sua mente como veneno: estaria sua fé realmente forte o suficiente para resistir ao que estava por vir? Ou ele já havia cruzado a linha entre o sagrado e o profano?

Naquela noite, quando finalmente se levantou para apagar as luzes da igreja, sentiu que estava à beira de algo terrível e inevitável, como se o abismo o aguardasse, e fosse apenas uma questão de tempo até que ele caísse por completo.

Entre o Céu e o Inferno| FATHER CHARLIEOnde histórias criam vida. Descubra agora