A Face do Pecado

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Capítulo 9:

Nos dias que se seguiram ao confronto com Clara, Padre Charlie se isolou. Evitava cruzar com ela na cidade e até mesmo nas ruas próximas à igreja. Passou a rezar mais intensamente, a buscar redenção nas palavras das escrituras e a implorar por força para resistir à tentação que se aninhava em seu coração. Porém, por mais que tentasse, não conseguia apagar o desejo que havia sido aceso, e Clara ainda era uma presença constante em seus pensamentos, como um sussurro persistente que o atraía para longe de sua fé.

Uma noite, depois de realizar as últimas orações do dia, ele decidiu caminhar até a capela privada anexa à paróquia, onde poucos iam. Era um local reservado, com vitrais antigos que refletiam luzes coloridas na penumbra, criando um ambiente de quietude solene. Ali, ele acreditava que poderia encontrar um momento de paz.

Ao entrar na capela, no entanto, a figura que ele menos esperava encontrar estava ali, ajoelhada em oração, com a cabeça inclinada e os cabelos caindo em cascata ao redor do rosto. Clara. O coração de Charlie deu um salto involuntário, e por um momento ele pensou em se retirar silenciosamente, mas, antes que pudesse se virar, ela levantou o olhar e o viu.

"Padre," disse ela suavemente, com uma expressão que parecia mesclar surpresa e algo mais profundo. "Você está evitando a mim ou algo dentro de você?"

Charlie sentiu um rubor subir ao rosto. A pergunta era direta demais, e ele não sabia como responder sem revelar a própria inquietação. "Clara, este é um lugar sagrado," respondeu, tentando manter um tom firme. "Você não deveria estar aqui a essa hora."

"Estou procurando respostas," ela disse, levantando-se lentamente. "E talvez as encontre aqui." Clara deu alguns passos em direção a ele, parando perto o suficiente para que Charlie pudesse sentir seu perfume sutil, uma mistura de flores e algo quase inebriante. "E você, Padre? O que está procurando?"

"Estou buscando afastar de mim o que não é puro," ele respondeu, mas sua voz falhou ligeiramente. "Estou lutando para não cair."

"Você ainda acredita que seus sentimentos são impuros?" Clara perguntou, e havia uma ternura em sua voz. "Ou será que, no fundo, você está com medo do que esses sentimentos significam?"

Charlie sentiu a raiva e o desejo se misturarem dentro de si, formando um nó no estômago. "Não tenho medo, Clara," ele mentiu, com os punhos cerrados. "Tenho fé. E é isso que me mantém firme."

Clara deu um passo à frente, aproximando-se ainda mais. "A fé não deve ser uma prisão, Padre. Deve ser uma escolha. E se você está lutando tanto para resistir, será que isso não é um sinal de que está reprimindo algo que deveria explorar?" Ela ergueu uma mão e a pousou suavemente sobre o peito dele, sobre o crucifixo que ele usava. "Você sempre fala de sacrifício, mas e se o verdadeiro sacrifício for abrir mão do que sente?"

O toque dela queimava como fogo contra a pele dele, mesmo através do tecido. Charlie sentiu o corpo inteiro tenso, como se estivesse prestes a ceder a uma força irresistível. "Você... precisa ir embora," ele sussurrou, mas sua voz não tinha convicção. "Isso... isso é errado."

"Errado por quê?" insistiu Clara, os olhos dela fixos nos dele, cheios de uma intensidade que ele nunca havia visto antes. "Por que é pecado amar? Por que é pecado querer alguém que o faz se sentir vivo?"

As palavras dela penetraram fundo, como se estivessem abrindo caminho por entre as muralhas que ele havia construído para se proteger. "Amar não é pecado," respondeu ele, finalmente, sua voz baixa, quase rouca. "Mas o desejo... o desejo pode nos afastar de Deus."

"E se o desejo puder aproximá-lo de algo mais verdadeiro?" Clara retrucou, sem afastar a mão do peito dele. "E se ele for parte do que você realmente é, parte do que Deus criou em você?"

Por um momento que pareceu se estender eternamente, Charlie sentiu-se à beira de uma decisão que mudaria tudo. As barreiras de sua fé, seu senso de dever, o medo do pecado, tudo parecia desmoronar diante do olhar penetrante de Clara e do calor de sua mão. Ele sabia que, se cedesse, não haveria volta.

Mas antes que pudesse se mover, algo dentro dele o fez recuar. Ele afastou a mão dela com um gesto brusco e deu um passo atrás, respirando com dificuldade. "Não posso," disse, com os olhos cheios de dor e frustração. "Não posso trair tudo o que dediquei minha vida para ser."

Clara o olhou por um momento, com uma expressão mista de decepção e compreensão. "Então, talvez, você já tenha traído a si mesmo," murmurou ela, antes de se virar e sair da capela, deixando-o novamente sozinho, com o peso de sua escolha e o vazio de sua renúncia.

Padre Charlie caiu de joelhos diante do altar, com as mãos apertando o crucifixo contra o peito, como se isso pudesse afastar o desejo que ainda queimava dentro dele. Mas, mesmo ali, no lugar mais sagrado que conhecia, não conseguia mais fingir que seu coração pertencia somente a Deus. Clara havia deixado uma marca indelével em sua alma, uma marca que nem todas as orações do mundo seriam capazes de apagar.

Entre o Céu e o Inferno| FATHER CHARLIEOnde histórias criam vida. Descubra agora