Requiem Aeternam

22.8K 1K 1.2K
                                    

De pé em minha sala a vista da cidade lá embaixo não me surpreendia mais. Já passava das sete da noite e Nova York estava completamente acesa, as pessoas mantinham o fluxo intenso nas calçadas, muitas voltando pra suas casas depois de mais um duro dia de trabalho, outras muitas felizes por estarem voltando para suas famílias... e mais um suspiro me escapou. Hoje eu não seria mais uma nesse meio, e por meses inteiros eu estive inserida em uma parcela diferente da população. Hoje fazem dois anos e eu ainda não sei por que mantenho uma contagem de algo do qual não faço a mínima questão de lembrar ou festejar, mas os costumes dizem para você trazer à memória os grandes e os terríveis acontecimentos, pelo menos uma vez, nos anos que os sucedem. E era isso que eu faria hoje em minha cadeira de escritório com minha garrafa de uísque.

Da mesma forma como quando voltei para cá, agora eu também tenho de saber colocar os sentimentos de um passado turbulento pra trás sem esquecê-lo completamente e sem descartar as coisas boas que me aconteceram, o que pareceu ser impossível por longos e mais longos dias nos quais eu apenas me dava conta de como as coisas boas estavam sempre interligadas a algo ruim de alguma forma. Mas finalmente eu percebi que a vida é isso e nada é por acaso. Não que eu acredite em karma ou leis de compensação do universo, mas de qualquer forma nossas ações influenciam diretamente nas outras, seja formando caráter ou reverberando através do tempo. Coisas ruins acontecem, e eu aprendi que é sempre depois delas que coisas melhores vem, isso se você for capaz de se recompor e extender a visão para além do mundo que você já conhece.

A blusa social aberta nos dois primeiros botões superiores era minha mais nova mania, meus dedos estavam acostumados a passear pela pele de meu colo, a linha da minha clavícula e escorregar levemente até minha cicatriz no tórax. Lembro de sempre me assustar nos primeiros dias depois de deixar o hospital, aquela linha sobressaltada de pele rosada não parecia parte de mim. O mesmo eu dizia do coração que batia em meu peito quando descobri tudo. Lembrando daquele momento de esclarecimentos, agora eu me sentia horrível por soar tão ingrata quando fiz um escândalo dentro do meu quarto de hospital. Desde o começo eu sabia que para viver, alguém teria de estar morto, mas nunca me passou pela cabeça realmente precisar que isso acontecesse ou muito menos receber um coração da pessoa que eu menos desejava.

Teimosia e ideias radicais estavam sempre com as pessoas próximas à mim, mas nunca ao ponto de dar a vida por ninguém. Na teoria era tudo mais aceitável, mas quando meras possibilidades se fizeram realidade eu não soube suportar. Mesmo depois de tudo que passamos, nosso afastamento e reaproximação, nossas brigas e desentendimentos, nossos pensamentos diferenciados... olhando para o porta retrato que me obriguei ter em minha mesa desde que retornei, nada disso importava mais e tudo que me restavam eram boas lembranças e amor. Talvez um amor tardio, talvez um amor que eu por muito tempo não julguei verdadeiro, afinal, depois de morrer todos recebemos flores e merecemos o céu. Durante a vida não foi bem assim, com ela nada foi preto no branco, tivemos nossos altos e baixos, nossos momentos de dúvida sobre o que pensávamos e sentíamos uma para com a outra... então todo e qualquer sentimento demasiado, que me soasse mais simples do que tudo isso, não parecia real. Mas era. Eu a amava e a vida me mostrou isso a todo momento. Depois da morte do meu pai eu aprendi que não há tempo oportuno para perdoar e estar de bem com aqueles que amamos. Mas verdade seja dita, por mais difícil que seja, é melhor fazer essas coisas enquanto se ainda pode desfrutar da leveza da reconciliação. Nada é mais difícil do que a dor do não poder.

Não quero mais perdas, não quero caixões cheios de sentimentos aprisionados e palavras engasgadas em uma boca que jamais se abrirá novamente. Quero o aqui e agora, quero resolver os problemas logo depois de sugirem, quero me desculpar sem ao menos ter errado; quero a paz de uma vida tranquila e sem arrependimentos, porque é assim que sinto que eles partiram. Esse pedaço dela que agora mora dentro de mim não me deixa olhar mais para trás, não da mesma forma de antes. Não carregada em arrependimento. O que passou, passou e agora eu tenho uma nova chance de viver como planejei desde que retornei a Nova York. Apesar do sofrimento, apesar dos problemas que tive de viver e enfrentar, hoje eu sei que a vida me preparou para algo maior do que meus olhos poderiam ver naquela época. Fardo nenhum lhe é dado sem que você possa suportar e não há recompensa maior do que aquela que você é capaz de apreciar. Há males que vem para o bem, não é mesmo? É difícil se conformar com isso, requer tempo e uma boa mentalidade, mas o segredo é nunca desistir. Sim, a vida não será fácil, você cairá em poços, uns mais fundos do que outros; você será desafiado, julgado, aprisionado em sua própria mente... Mas somente porque você é capaz de superar cada um desses desafios e encontrar uma recompensa imensurável e inigualável: a gratidão.

RequiemOnde histórias criam vida. Descubra agora