Falha de Identidade

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Encarando a tela do meu celular pela primeira vez em horas, eu me conformava de que já havia se passado dois dias desde que tudo aconteceu. Mensagens chegavam de todos os cantos, eu coloquei o aparelho em estado silencioso e o abandonei em um canto qualquer, procurando evitar, de qualquer forma o dia de hoje. Mas eu fiz o meu melhor, até agora. Abrindo a janela de notificações me deparei com o esperado: "Onde você está?", "Está tudo bem?", "Filha, você precisa estar aqui hoje"... a decepção me desceu garganta à baixo com a última mensagem que meus olhos encontraram. Apertei o aparelho com meus dedos e o lancei longe, me dando conta da besteira quando ouvi o estraçalhar das peças. Camila surgiu no corredor com os olhos esbugalhados e a respiração ofegante, pelo ruído de suas passadas eu deduzi que o barulho a houvesse assustado.

- Desculpe - foi tudo que manejou sair da minha boca. Ela voltou o olhar do recém destruído aparelho até mim, suas sobrancelhas se apertaram sobre os olhos e ela sacudiu a cabeça antes de sumir para dentro do apartamento com um forte suspirar audível do sofá onde eu estava deitada.

Ela estava brava, ela estava incrivelmente brava comigo e não era só por conta de um mísero celular destruído em sua sala. Eu queria culpa-la, parte de mim queria me convencer a todo custo do quanto ela estava sendo insensível, de como ela estava me destratando em um momento tão sensível da minha vida, mas a outra parte de mim sabia que não era bem assim. Eu estava me fazendo de vítima, a estava atrapalhando por dois dias inteiros e tudo que ela recebia em troca, todo esse tempo, eram reclamações e murmúrios. Eu sabia reconhecer um pé no saco quando eu via um e era exatamente o que eu estava sendo. Era como se houvesse duas pessoas diferentes dentro de mim tentando tomar conta das minhas ações, como se estivesse sendo tramada uma batalha de personalidades, uma boa e uma ruim. Elas batalhavam com todas as forças, mas desde que tudo aconteceu a ruim vem se mostrando mais forte. Mais imponente.

Esses últimos dois dias tem sido bastante complicados para mim, desde que me pai morreu e me deixou apenas uma carta de reconhecimento do quanto eu fui idiota todo esse tempo, tudo que eu sei fazer é existir. Há muito eu havia esquecido o que era viver, esse prazer parecia ter sido tirado de mim naquele dia. Junto àquela chuva, toda minha esperança, felicidade, vigor escorreu pelo meu corpo e mais tarde pelas ruas de Nova York até o bueiro mais próximo. Eu me sentia vazia, essa era a melhor palavra que eu encontrei nesse tempo para me descrever. Eu sou um cadáver ambulante, caminhante, pensante, mas abstinente de tudo que realmente me torna humana. Quase que todo o tempo uma vontade de chorar me pegava desprevenida, era tão forte quanto o que eu senti quando vi o corpo do meu pai atravessar o corredor, mórbido naquela maca, mas eu nunca conseguia derramar lágrimas, parecia que essas havia acabado.

Cada hora que passava eu me sentia menos significante, eu literalmente podia sentir que algo havia morrido dentro de mim, só não sabia ao certo ainda o que. Meus sentimentos não pareciam mais presentes, desde alegria ao sofrimento, nada mais parecia me incomodar o suficiente em ambas as formas. Eu me sentia como um poço vazio e escuro, deixado lá frente ao desgaste e descuido, repleto de teias e bichos horrendos. Os dois dias se arrastaram enquanto eu mesma me arrastava pelo apartamento. Da cama para o banheiro, do banheiro para a cozinha, da cozinha de volta para a cama. Esse era o meu maior percurso, realizado apenas em momentos de extrema necessidade quando Camila decidia que não era mais certo me mimar. Camila. Encarando o corredor no qual ela havia aparecido agora a pouco eu me peguei reconhecendo, pela milésima vez esses dias, que ela era a única pessoa que me amava verdadeiramente entre todas as outras. Nada contra os meus amigos, mas ela foi a única que avançou contra as minhas resistências e permaneceu aqui.

Desde que ela me pegou naquela chuva de murmúrios e sofrimento eu venho sido cuidada com muito carinho e paciência. De banhos à cafunés durante a noite para meu sono, quase impossível, Camila se manteve ao meu lado me cuidando com extrema cautela quando, na verdade, ela não precisava e eu não ajudava, dando-lhe todos os motivos para que não o fizesse. Todo esse tempo minha boca tem permanecido selada para elogios, tudo que eu sabia fazer era resmungar palavras ou ruídos pelo apartamento, fosse ao me esbarrar com algo ou apenas com minha ingratidão. Ao mesmo tempo que eu tinha consciência do quanto estava destratando-a sem motivos, algo dentro de mim se tornava incontrolável em momentos assim. Era quase como uma postura que eu assumia, mas Camila nunca entrou em uma discussão comigo. Por absolutamente nada. Ela tem se mostrado incrivelmente paciente e leal, isso tinha que ser amor verdadeiro não é? O que mais seria?

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