Não podia ser verdade. Já eram mais de onze horas da noite e a minha mãe ainda estava no meu apartamento no meio de uma discussão de relacionamento. Como se não bastasse, a minha vida era o foco dos palpites.
- Não, não e não. Eu não vou me casar, mãe. Não insista com essa loucura.
- Mas todo mundo já está perguntando quando será o casamento e comentando que o rapaz mora com você. Um absurdo. Não posso conceber essa ideia de um rapaz morando no seu apartamento. Você ainda é uma menina.
- O inconcebível, mãe, é você perder o seu tempo ouvindo as bruxas das suas amigas e investigando a minha vida. E eu não sou mais criança, já tenho mais de 20 anos, a senhora se esqueceu? E para acabar com a sua curiosidade, não há ninguém morando comigo além do Freddy.
Freddy era o gato. Freddy Krueger.
- Mais alguma coisa, mãe?
- Você está me mandando embora, Blanda?
Mamãe insistia em ter suas crises bem nas horas em que eu precisava de descanso. O dia seguinte seria duro, eu iria procurar trabalho pela segunda semana seguida, sem nada em vista e com a esperança no fim da fila. Já estava dura desde a saída do meu último emprego, e o pouco dinheiro guardado mantinha aquele apartamento de quarenta metros quadrados comigo e Freddy dentro. Eventualmente com o Max.
- Mamãe, não estou te mandando embora, apenas preciso dormir. Amanhã vai ser um dia cheio pra mim, tenho que arrumar um emprego urgentemente. A senhora sabe que eu piro quando não trabalho.
Mas ela não entendia. Voltou com o papo de que eu deveria me casar com Maximiliano, porque ele era um bom partido. Nunca entendi esse conceito ultrapassado. Para mim, bom partido seria um homem lindo, forte, honesto e que me levasse café na cama. Dinheiro eu sempre quis ganhar com o meu trabalho. Pegar emprestado cartão de crédito me deixa mal.
Para mamãe parecia importante eu encontrar um homem de família rica, mas ela nunca me perguntou se eu estava feliz. Era como se uma festa de casamento pudesse resolver todos os meus problemas, inclusive de grana, mas esse não era meu pensamento. Casamento não resolve nada e, se já está ruim agora, pode ficar ainda pior. É preciso primeiro ser feliz para fazer alguém feliz, e com certeza eu não estava nesse estágio.
- Blandinha, pense bem no que eu disse. Afinal de contas, eu queria entender por que você insiste em trabalhar se não precisa.
- A senhora não pode estar falando sério. Eu insisto em trabalhar e não preciso? Eu amo trabalhar, mãe. Eu me sinto gente quando trabalho, eu me sinto útil. E tenho que pagar as minhas contas, elas estão fazendo convenção para ver qual irá me ferrar primeiro. O Max não tem nada a ver com isso, nem a senhora, nem o Freddy.
Para ser bem sincera, havia momentos em que eu achava que o gato era o ser que mais se preocupava comigo. Mamãe não pareceu muito contente com minha resposta, mas foi embora. Não antes sem levar com ela o último biscoito amanteigado da caixa que ganhei da Dona Cotinha.
O dia seguinte já era previsível. Vesti o meu terninho cinza-claro e bati na porta de mais alguns escritórios. Eu sentia que estava agindo de maneira errada, mas, se não sabia qual era a certa, poderia manter aquele esquema até fazer uma grande descoberta. Eu detesto a cor cinza e acho que isso contribuiu para o mau desempenho na primeira entrevista. Um dos diretores da empresa me perguntou qual o motivo principal de eu estar ali e a resposta foi que eu precisava de um emprego e de dinheiro. Uma grande burrada insistir em ser sincera. Já que empregadores não querem sinceridade, pensei em utilizar outra tática na segunda entrevista: muita simpatia. Era um escritório pequeno, mas que poderia me oferecer uma oportunidade.
- Queremos funcionários competentes nesta empresa e, se puder provar a sua eficiência, receberá uma chance - disse o homem do outro lado da mesa, com olhar arrogante e pretensioso. Senti um nó no estômago. - Então, diga, senhorita, por que decidiu ser advogada?
Foi ali que a situação ficou crítica. O nó que estava dentro de mim se transformou em uma luta estomacal. Eu podia jurar que alguns alienígenas tinham se apossado do meu corpo com espadas. Fiquei sem conseguir responder nada e, quando abri a boca, um ar quente saiu de mim e os seres de outro planeta devem ter gritado alguma coisa, mas nem eu nem o senhor sóbrio na minha frente percebemos.
- Eu... eu não sei.
Foi a resposta mais patética que eu já dei em toda a minha vida profissional, mesmo que ela não fosse brilhante até aquele momento. É claro que eu não sabia por que tinha me tornado advogada, mas ele nunca poderia saber disso. E eu contei logo no primeiro encontro. E último. Depois de mostrar ao poderoso futuro chefe a perfeita imbecil na qual eu posso me tornar em alguns momentos críticos, eu saí da sala com a promessa de "um retorno assim que uma vaga surgisse". Eu precisava aprender a ser política daquele jeito, precisava.
Max resolveu fazer uma visita justamente naquele dia. Eu sabia que seria complicado, porque ele era chato, exigente e egoísta e provavelmente sequer perguntaria como tinha sido o meu dia de caça ao emprego. E foi exatamente dessa forma que tudo aconteceu: ele chegou, quis saber se eu tinha feito algo para o jantar, tirou os sapatos e as meias fedorentas e deitou, todo imundo, em meu sofá branco.
- Max... ô Max... faz um favor? Hum... você poderia levar essas meias até a lavanderia?
Foi só o que eu consegui dizer, que cretina. Ele estava ali, sujo no lindo sofá que ainda nem tinha acabado de pagar e eu pedi para ele levar as meias para a lavanderia? Meias que, aliás, quem iria lavar seria eu, com toda a certeza do mundo. Tive a impressão de que Freddy me chamou de trouxa, mas no instante seguinte ele estava dormindo de novo.
Max disse que levaria as meias depois, mas não levou. Ele dormiu durante longos quarenta minutos no meu sofá e tive que aturar um ronco-britadeira. Cada dia ele me mostrava uma face mais interessante de seus roncos. Sabia que quando acordasse negaria que ronca e diria que, mesmo se roncasse, eu deveria aceitar se o amasse. Mas não pensou se eu estava disposta a aceitar alguém cujas meias cheiram a leite coalhado.
Depois da cochilada, levantou e veio direto para a mesa ver o cardápio. Sopa, somente sopa. Reclamou que estava ruim, mas comeu três pratos.
Logo contei onde estava a nova escova de dentes que eu havia comprado para ele - azul, como tinha que ser. Achava o Max neurótico, porque a obsessão por escovas azuis não fazia sentido para mim e ele nunca quis conversar sobre isso. Não perguntou se poderia dormir em casa, mas dormiu.
Procurei por Freddy e fomos deitar juntos no sofá. Max não tinha me dado nem um beijo de boa-noite, nem uma bitoca, uma lambida, uma mordida, nada. O gato se ajeitou ao meu lado, esticou uma das patas e eu disse: "Boa-noite pra você também, Freddy". Aumentei o volume da televisão e assim consegui dormir sem ouvir os roncos que vinham do quarto.
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Em breve postarei os próximos capítulos! :-)
Beijos,
Fernanda.
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9 Minutos com Blanda
RomanceO maior inimigo de Blanda é o despertador. A advogada está desempregada, quase sem dinheiro e divide o apartamento com seu gato Freddy Krueger. A presença constante de Max a recorda que ela tem um namorado, embora ele nunca tenha assumido o relacion...