9 Minutos com Blanda

24. Frio na barriga

Na noite em que me reconciliei com minha mãe, consegui pintar o último quadro da encomenda. Os dois ficaram lindos, juntos, como duas peças que se completam. Foi quando pensei se pessoas também eram assim. Seria possível encontrar alguém para nos completar, uma parte de que sentimos falta desde que nascemos, mas que só conseguimos entender quando nos tornamos adultos? Eu já tinha me convencido a conviver com a falta, a apenas aceitar alguém que poderia me ajudar a ser feliz. Completar era demais para os meus sonhos.

Coloquei os dois quadros na parede. Ali, eles pareciam ainda mais belos, e eu não tive medo de assumir que pintava bem. Sem modéstia, mas sem arrogância. Um pensamento realista, mas confortador, de que eu era capaz de fazer algo útil, bom e que poderia transmitir beleza às pessoas.

Ao me sentar no sofá branco ao lado de Freddy, olhei para a parede, agora mais alegre com os quadros. Eu estava vazia por dentro, mas com uma certeza de que tudo iria melhorar. Mamãe estava ao meu lado, depois de anos o meu pai também, eu tinha o carinho de Dona Cotinha e, por mais que a minha situação me mostrasse o contrário, eu acreditava que em pouco tempo estaria radiante. Só não sabia como chegar lá, era como se estivesse em um caminho de olhos vendados, deixando o destino decidir, já que nem sempre é fácil fazer as escolhas corretas.

A minha cliente perguntou pelos quadros e eu lhe disse que podia vir buscá-los, embora ainda estivessem com a tinta fresca. Ela não se importava e disse que uma pessoa os buscaria para ela no dia seguinte. Combinamos pagamento e eu fiquei feliz porque poderia quitar as dívidas com o aluguel e condomínio. Por isso que tanta gente sonha com casa própria. Pagar para morar é muito chato.

Deitei ali mesmo e Freddy se enroscou em minha barriga. Pensei em levar o gato ao veterinário no dia seguinte, para tomar a vacina anual contra a raiva antes mesmo de vencer o prazo e para perguntar o que eu deveria fazer com aquele rabo colorido. Apesar da minha culpa, acho que meu companheiro peludo nem se incomodou com seu novo visual.

Com a barriga cheia de comida da mamãe, eu dormi.

Sonhei que entrava na igreja com um vestido roxo de mangas bufantes. Na barra, estrelas prateadas, iguais àquelas do arranjo de cabelo, ainda laranja. O véu cobria o meu rosto e eu me via de cima, como um diretor de filme. Carregava um buquê de brócolis com uma fita roxa da cor do vestido. Entrava sozinha na igreja vazia e, quando chegava ao altar, lá estava um homem sem rosto, com um ponto de interrogação no lugar do nariz. Na posição do padre estava Max, sem sorrir, com as sobrancelhas coladas uma na outra e um olhar de reprovação. Só havia uma madrinha: Manuela, a namorada de Bernardo, a arrogante dona da loja de tintas. E ela estava com um vestido de noiva branco.

Acordei assustada, como se fosse madrugada e aquele tivesse sido meu único sonho durante toda a noite. É como se ele tivesse repetido várias e várias vezes, mas eu nunca descobria o rosto do noivo misterioso. A cada vez que entrava na igreja, ouvia risadas vindo do altar. Quando percebi, já era de manhã, eu estava com a mesma roupa da noite anterior e Freddy dormia em uma das cadeiras da mesa de jantar. Os quadros permaneciam na parede, como os tinha deixado, reluzentes com a fresta da luz do sol que entrava pela janela.

A agenda mental do dia mostrava horas corridas.

Primeiro eu receberia a minha cliente e o meu dinheiro, depois iria procurar a Teca. Não poderia suportar mais aquela situação. E então, como o dia era de soluções, eu iria à casa de Max para conhecermos o local escolhido por sua mãe para o casamento. Temi por ele não ter um altar como eu queria e voltei a pensar no sonho.

Tomei banho, lavei o cabelo e sequei. Parecia a Branca de Neve, com as madeixas mais curtas e negras. Gostei da mudança, não podia negar que mamãe entendia de tintura de cabelo muito mais do que eu.