A noite na casa deles havia sido um tédio. Fiquei quase o tempo todo sozinha e quando eu percebi que meu pai queria ficar um pouco sozinho com a Cíntia, - e considerando que na verdade eu não tinha nada para fazer - me ofereci para tirar a mesa e lavar a louça. No início ela não quis ceder de jeito nenhum. Disse que eu era visita, que nunca ia na casa dela e que não fazia o mínimo sentido eu fazer aquilo. Mas eu adorava lavar a louça, por incrível que pareça. E era eu que fazia isso em casa, na maioria das vezes, então estava acostumada. Meu pai falou isso para ela, mas só quando eu disse que gostava de fazer aquilo, ela permitiu. Não sem antes me olhar bem estranho, como se eu fosse um alienígena. Qual o problema de gostar de lavar louça, gente? Então eu já havia levado todos os pratos para a cozinha, enquanto os dois conversavam no sofá e comecei a lavar os pratos, calmamente, para que, se eu tivesse sorte, quando acabasse já fosse hora de ir embora. Meus pensamentos começaram a vagar distantes dali, e me peguei, mais uma vez, pensando no Ricardo. Ele era da minha turma e eu gostava dele já tinha um tempinho. Eu não sei se ele sabia disso, mas eu o via olhando para mim de vez em quando. E isso me encorajava a continuar gostando dele. A Bia vivia me dizendo para ir logo falar com ele. Eu dizia que ela era louca. Jamais faria aquilo. Eu era insegura demais para isso. Minha natureza sempre foi essa. Eu sei que às vezes podia parecer que eu fazia tempestade em copo d'água com o fato de uma coisa que havia acontecido em uma festa quando eu tinha dez anos me afetar tanto. Mas a verdade é que eu sempre fui uma criança complexada. Eu era gordinha, meu cabelo cacheado me fazia parecer um carneirinho e eu agia como uma idiota sempre que um menino chegava perto de mim. Como meus pais tinham essa amizade com a Cíntia, eu achava que eu poderia ter finalmente um amiguinho, o Rafael. E como eu já disse, achava ele uma gracinha e ter um amiguinho bonito, era tudo que eu mais queria. Então para ir àquela festa, eu pedi para minha mãe fazer uma escova no meu cabelo e eu escolhi meu vestido rosa com bastante antecedência, aguardando a festa com muita ansiedade. E foi então que aqueles meninos resolveram tirar sarro de mim, porque no final eu fiquei a cara da Dora Aventureira e para piorar a situação, meu nome era Isadora. O que só ajudou mais ainda a tornar aquilo um inferno na minha vida. Mesmo agora, ouvir alguém me chamando de Dora, me dava calafrios. Jamais!! O que eu sei é que depois dessa festa, eu nunca mais deixei alisarem meu cabelo e assumi meus cachos. Enquanto eles cresciam, eu ainda parecia uma ovelhinha, mas aos poucos, eles foram ficando compridos e pesados. Hoje em dia, eu tinha o maior orgulho do meu cabelo e era minha maior vaidade. Pensando bem, talvez eu devesse agradecer ao Rafael. Não. Deixa pra lá.
Levei um susto quando a Pati falou comigo ao chegar na cozinha com ele, ela estava indo embora e queria se despedir de mim. Me disse que esperava que nos encontrássemos mais vezes, mas eu duvidava que isso fosse acontecer logo. Eu tinha ido naquele dia, o que me dava crédito para faltar nas próximas quatro ou cinco vezes. Depois que ela saiu, o Rafael me chamou de inútil e eu quase voei no pescoço dele. Fiquei com tanta raiva que não consegui pensar em nada para responder na hora. E isso me deixou com mais raiva ainda. Odiava ficar sem dar a última palavra, principalmente em uma discussão. Ele logo saiu, me deixando sozinha, remoendo a raiva que eu sentia dele.
Continuei lavando a louça, tentando afastar aqueles pensamentos e voltando a lembrar de Ricardo e de quem eu me tornei depois daquela festa. Além do meu cabelo, eu jurei que ninguém nunca mais me chamaria de gorda. Então, mesmo com dez anos, eu comecei a comer pouco. Minha mãe, é claro, reparou em menos de uma semana e me convenceu que eu estava ótima, que era uma criança ainda em fase de crescimento e que precisava comer bem para crescer saudável, mesmo assim, eu parei de comer besteiras. Me disse também, que com uns doze ou treze anos, provavelmente, eu esticaria e perderia o corpo de criança. Ela tinha razão, pena que não chegou a ver essas mudanças em mim. Aos meus quatorze anos – demorei mais do que ela esperava – eu cheguei a quase 1,70 e a barriga saliente, sumiu. Embora eu fizesse aulas de natação nos últimos cinco anos, o que garantiam que eu mantivesse a forma também. Enxuguei o último prato e lavei a mão, secando a pia e deixando tudo organizado. Voltei para a sala e vi que eles dois estavam se beijando. Eu não sabia onde me esconder. Voltei de fininho, tentando fazer o mínimo de barulho possível, para a cozinha e sentei em uma cadeira mexendo de novo no meu celular.
Isa: Vocês vão hoje na festa do Tiago?
Bia: Claro que sim. Já me viu faltar alguma festa antes?
Realmente, não. Bianca era minha amiga mais aloprada. Ela era maluquinha, extrovertida e não parava em casa um minuto. Estava sempre em alguma festa, na casa de alguém, no shopping, não importava, desde que não estivesse em casa aturando o irmão mais velho dela. Ela dizia que ele era implicante e insuportável. Eu dizia que ele era bastante inconveniente. Quando eu a visitava, ele não me deixava em paz, jogava indiretas o tempo todo e fazia piadas bem sujas. Eu não gostava daquilo. Como eu havia dito, nunca me comportei bem na frente de meninos, eles me intimidavam e eu nunca sabia o que dizer ou fazer. Nunca tive amigos, só amigas. Claro que eu tinha colegas, na escola, mas só isso, colegas. Quando algum deles me dava um pouco mais de papo, ou eu falava besteira ou ria igual uma boba do que eles estavam falando. De qualquer jeito, eles só podiam me achar uma idiota. Mas eu era uma romântica incurável e fazer piadas sujas, falar besteira no meu ouvido e ficar jogando indiretas, não era o jeito certo de chegar em mim. Por isso eu não gostava muito do irmão da Bia, e ficava satisfeita que ela compartilhasse desse sentimento, quase nunca me levando para a casa dela. A Paulinha por outro lado, era sonhadora igual a mim. Ela tinha um namorado muito legal, o Tomás, com quem eu por acaso, me dava muito bem. Acho que porque não tinha interesse nenhum nele, ou não fizesse questão de impressioná-lo para gostar de mim, que eu conseguia agir naturalmente e ser eu mesma. Não que eu estivesse sempre querendo impressionar os caras ou tentando fazer com que gostassem de mim. Não nesse sentido. Eu só queria ser aceita, como eu já disse, era muito insegura. Já havia ficado com três caras, e nos três casos, foi a Bia que desenrolou, fez eles chegarem em mim, mas nunca deu em nada. Cheguei a sair algumas vezes com um deles, mas não passamos de quatro encontros e no fim, eu nunca tinha tido um namorado na vida. Já na minha cabeça, eu havia namorado todos os garotos de quem eu havia gostado. Atualmente, eu estava com o Ricardo.
Meus pensamentos foram interrompidos pelo meu pai, que chegou na cozinha falando que já era hora de irmos embora. Me pediu para chamar o Gui, enquanto ele se despedia da Cíntia. Sorri de lado, entendendo que eles iriam aproveitar mais alguns minutos a sós e fui chamar meu irmão. Como sempre, ele não queria ir embora. Ele fazia isso na casa de todo mundo, dos amiguinhos, das minhas avós, da minha tia e até da Paulinha, quando eu tinha que levá-lo para não ficar sozinho. Desde que dessem atenção e alguma coisa para ele brincar, ele ficava feliz. Eu me sentia culpada por isso, de vez em quando, significava que ele estava sempre entediado em casa e ficava feliz quando tinha outras companhias. Mas a culpa não era minha se tínhamos uma diferença tão grande de idade. Eu tentava compensar jogando com ele, lendo, vendo filmes, mas no final, eu sempre tinha que estudar e ele acabava sozinho. Prometi que brincaria com ele no dia seguinte e isso o convenceu a levantar e ir embora comigo. Consegui me segurar para não dizer nenhuma grosseria para o Rafael, em resposta ao que ele havia me dito. Achei mais fácil, simplesmente ignorá-lo por completo.
Quando chegamos em casa, eu me joguei na cama e estava quase dormindo quando meu pai entrou e sentou-se ao meu lado.
- Obrigada. – Ele passou a mão no meu cabelo, tirando os fios do meu rosto e me deu um beijo na testa.
- Pelo quê? – Falei sonolenta sem entender.
- Por ter se comportado na casa da Cíntia. – Ele falou dando de ombros. – Sei que você não fez questão de conversar com ninguém, mas pelo menos não falou nada ruim.
- Poxa, muito obrigada. – Falei, irônica e ele riu.
- Estou falando sério. – Ele suspirou e levantou. – Eu te amo.
- Eu também te amo, pai. – Sorri e fechei os olhos, me entregando.
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Ele e Ela [Os Dois Lados da História] [COMPLETO]
Teen FictionISADORA "Dentre tantas mulheres no mundo, meu pai tinha que escolher ficar justo com a mãe do garoto mais insuportável da face da Terra. Como uma mulher tão legal quanto a Cíntia, havia gerado um ser assim irritante? O Rafael me tirava do sério, me...