[42] RAFAEL

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Eu mal dormi a noite toda, mesmo estando na minha própria cama. Não conseguia me desligar de tudo que ouvira sair da boca da minha mãe. Ainda não conseguia acreditar na metade. Não via a hora de sair de casa, as paredes estavam me sufocando. Cheguei na praia antes do horário combinado com Isa, porque não aguentava mais e o mar sempre me acalmava. Estava cedo ainda, pouquíssimas pessoas circulavam por aquela área. Andei até a beira da água e sentei, deixando as ondas fracas molharem meu pé. O mar estava calmo naquela manhã, em contraste com meus pensamentos que estavam revoltos como um mar de ressaca. Pouco antes das oito horas, ainda estava distraído e provavelmente me atrasaria pra encontrá-la, por estar perdido em pensamentos. Mas ela me encontrou. Eu estava na direção do quiosque, então não tinha sido tão difícil assim me avistar. Isadora sentou do meu lado, imitando minha posição, observando o mar também. Ficamos em silêncio por bastante tempo, como sempre, ela respeitava demais meu espaço.

- Quanto tempo você tem? – Perguntei, querendo poder conversar com calma.

- Sou toda sua. – Olhei rápido na sua direção, vendo suas bochechas pegarem fogo. – Quer dizer..., – Mesmo com tudo que se passava pela minha cabeça, eu não conseguia não sorrir perto dela, ainda mais depois de ouvir esse deslize. – quase. Vamos chegar lá aos pouquinhos. – E sorriu, encabulada. Puxei seus ombros, abraçando-a de lado e beijando sua têmpora.

- Obrigada.

- Pelo quê? – Perguntou, como se realmente não estivesse fazendo nada demais. – Você comeu antes de sair de casa?

- Não. – Neguei, vendo-a tirar um pote com quatro sanduiches de bisnaguinha e um pacote de biscoito da bolsa.

- Imaginei. – Me entregou e embora eu não estivesse com muita fome, sabia que precisava comer porque não comia nada desde a tarde do dia anterior.

- Às vezes me belisco pra saber se você é real. – Falei, começando a mastigar o primeiro sanduichinho.

- Alguém tem que cuidar de você. – Ela sorriu, enquanto brincava com a areia molhada, fazendo bolinhos e com aquela cara de sonhadora inocente, não duvidava que começasse a construir um castelo. Puxei seu rosto pra perto de mim e tomei seus lábios, beijando suavemente e sentindo seu gosto de achocolatado. Nos separamos e eu continuei comendo os pães, deixando o biscoito de lado e voltando a olhar pro mar.

- Ele não me abandonou. – Isa me olhou, séria, sabendo que eu escolhera começar o relato naquele momento. Agora sua atenção estava totalmente em mim, mas eu continuava a observar o horizonte, tentando lembrar tudo que eu havia descoberto na noite anterior. Não que eu tivesse esquecido, mas o choque fazia a percepção ficar meio borrada. – Eu não conheci meus avós paternos, não lembro do irmão do meu pai e também não tenho lembranças daquela época, exceto da cena dele indo embora. Acho que essa é a primeira memória que tenho da minha vida. Quando eu cresci um pouco, comecei a fazer perguntas, claro e as poucas respostas que obtive foram que meus avós haviam morrido e meu pai tivera os motivos dele para ir embora. Realmente meu avós morreram, deixando dois rapazes, um de vinte e três anos, meu tio e outro de dezessete, meu pai. Ou seja, meu tio tomou pra si a responsabilidade de cuidar do irmão, mas sem ninguém pra cuidar dele também, acabou afundando em bebidas e arrastando o irmão mais novo pelo mesmo caminho. Quando meus pais se conheceram, ele tinha vinte anos, bem mais novo que minha mãe, então com vinte e sete. Ela já trabalhava na empresa onde nossos pais ainda estão, estava apenas começando, meu pai, fazia bicos, estando sóbrio há algum tempo, a pedido da minha mãe. – Isadora estava atenta, pendurada em cada palavra que eu proferia. Com um aceno de cabeça, para indicar que estava acompanhando, eu continuei. – Então ela engravidou. À princípio, ele ficou feliz, ela preocupada. Durante quase dois anos e meio, ele conseguiu se manter longe da bebida, tentando fazer tudo dar certo. Então o irmão dele reapareceu, os problemas financeiros começaram e você pode imaginar. Ele voltou a beber, parecia perdido, imaturo demais pra ter um filho e uma mulher. Apesar disso tudo, ele nunca foi agressivo com ela, coisa que normalmente se espera de um bêbado, eu acho. Aparentemente, ele era louco por ela e na verdade, era a única pessoa no mundo que havia sobrado ao lado dele que não tentava colocá-lo pra baixo. Mas ela deu um ultimato, ou ele parava de beber, ou podia ir embora. Ele tentou, tentou e não conseguiu. Foi quando ele foi embora. Durante um tempo, ficou sumido, mas então minha mãe resolveu ajudá-lo. Enquanto cuidava de mim, trabalhava pra sustentar a casa, ainda tomava conta e visitava meu pai no centro de reabilitação. Mas então ele saía da reabilitação e não conseguia se manter sóbrio por muito tempo. Ele esteve realmente bem quatro vezes, durante esses anos todos.

Ele e Ela [Os Dois Lados da História] [COMPLETO]Onde histórias criam vida. Descubra agora