Maldita hora que eu resolvi assistir ao final do filme com ele. Maldita hora que eu peguei no sono no sofá, ao invés de ir pra minha cama. Maldita hora que acordei e a primeira coisa que vi foi o rosto dele, assustado com a minha possível reação e ainda meio amassado por ter acabado de acordar. E maldita hora que meu coração deu um saltinho ao ver essa imagem e ficar feliz. Como assim, cara? Como eu podia ficar feliz quando a primeira coisa que vejo ao acordar é a cara do Rafael? Não, não, isso estava muito errado. Eu não podia voltar a ter uma paixonite por ele. Com a diferença de que eu não tinha mais dez anos, e não seria uma paixonite boba. Eu me sentia atraída por ele e era um coisa muito mais adulta agora, que eu sabia o que significava querer ficar com alguém. Eu não podia gostar dele. Mas não porque ele era o meu karma, minha pedra no sapato todos aqueles anos. Não. Eu não podia gostar dele porque ele era o filho da mulher que estava namorando meu pai. Então quando ele falou que irmãos dormem juntos no sofá depois de verem um filme, minha primeira e mais desesperadora reação fora negar. Negar com todas as minhas forças. Eu não era irmã dele. Não queria ser irmã dele. Porque eu estava começando a gostar dele e isso era inconcebível. Passei o dia todo apática, sem prestar atenção à nada. E de repente, eu só queria que essa viagem terminasse, para que eu pudesse voltar para minha casa e me manter longe dele o máximo possível, como eu já fazia antes. Com a diferença que agora os motivos eram totalmente diferentes. Eu não podia me apaixonar. Ele não ia mudar o curso da minha vida novamente, por causa de uma paixão não correspondida.
Honestamente, não vi o tempo passar, não lembro de termos voltado para casa, nem de ter ido dormir, sequer me lembro de ter jantado, talvez eu nem tenha jantado afinal. Mas quando me dei conta, já estávamos à caminho do aeroporto para Madri. Chegamos à Madri-Barajas algumas horas depois e quase nos perdemos naquele mundo que eles chamavam de aeroporto. Juro que nem o Heathrow era tão gigante. Eu sei que era, mas não parecia. Chegamos na Gran Vía, por volta do meio da tarde. Após passarmos na casa para deixar as malas, como sempre, estávamos ali para passear um pouco, antes de voltarmos para descansar. Paramos para comer em um restaurante muito legal, chamado 100 Montaditos e enquanto a gente comia, eu percebi que o Rafael estava me observando intrigado, provalvelmente tentando entender porque eu tinha me fechado completamente em um concha e sequer falava com ele. Nos últimos dias tínhamos derrubado algumas barreiras, ainda que mantivéssemos nossos atritos e estivéssemos até nos divertindo ao fingir para nossos pais que estávamos nos dando bem. No final, acho que já nem fingíamos mais, não sei. O que sei é que nos falávamos, conversávamos às vezes e agora, eu não tinha mais coragem de olhar para ele. Não quando eu estava tentando evitar que meu coração fizesse uma merda tão grande.
Em três dias, visitamos o básico de Madrid, tirando muitas fotos do Palácio de Cibeles e do Palácio Real, da Plaza Mayor e da Puerta de Alcalá. Os dias estavam lindos, apesar de frios e as fotos que tiramos no Parque de El Retiro ficaram incríveis. Fomos ao Museu do Prado e ao Museu da Reina Sofia, sensacionais, mas eu já estava ficando meio traumatizada de tanto ver museu. Os rapazes, inclusive e principalmente Gui, que adorava sua escolinha de futebol, insistiram que precisávamos ir ao Estádio Santiago-Bernabéu no quarto dia e mesmo que Cíntia e eu não partilhássemos dessa idéia magnífica, nós fomos. Era enorme, moderno e maneiro. Mas não há muito mais que eu possa acrescentar, considerando que eu não gosto de futebol. Só que quando eles disseram que queriam ir ao Estádio Vicente Calderón também, eu bufei, reclamando. Sei que não tinha direito nenhum, imagina, se meu irmãozinho de seis anos não reclamou de entrar em trezentos museus ao longo daquelas três semanas, quem era eu para reclamar porque ele queria ver um estádio de futebol? Mas que eu estava de saco cheio, eu estava. Então quando a Cíntia disse que depois de irmos ao estádio, ela queria voltar no museu da Reina Sofia, eu me desculpei e perguntei se não tinha problema voltar para casa. Eu estava cansada, queria ficar sozinha e como eles não pareceram se importar, eu resolvi ir mesmo embora. Nós cinco estávamos no metrô e enquanto eles pegariam o trem para um lado, eu subi as escadas para pegar para o outro. E foi quando eu cheguei na plataforma oposta e olhei para a plataforma onde eles estavam e não os vi que respirei aliviada, por estar sozinha com meus próprios pensamentos. Isso até eu ouvir a voz do Rafael.
- Você pode me explicar o que tá acontecendo? – Será que ele não sabe o que quer dizer ficar sozinha? Por que ele tinha me seguido?
- O que você tá fazendo aqui? – Perguntei, sabendo que meu rosto devia estar branco como papel.
- Também não estava afim de ver museu, ainda mais um que já vimos. – Ele deu de ombros e eu concordei. O trem parou na nossa frente e entramos. – Você tava indo para casa mesmo?
- Não sei. – Me encolhi, olhando para o chão. Sinceramente, não fazia idéia, só queria ficar sozinha, coisa que ele conseguira atrapalhar.
- O que houve? – Ele perguntou novamente, me olhando e, provavelmente, esperando que eu gritasse que não era da sua conta, ou que ele não tinha nada a ver com minha vida.
- Não quero falar sobre isso. – Ele suspirou cansado. E não perguntou mais nada. Trocamos de linha algumas vezes e a sensação que eu tinha era que estávamos dando a volta ao mundo. E acabamos saindo novamente no Parque de El Retiro. – Por que aqui? – Perguntei curiosa.
- Porque eu gostei desse lugar. É calmo e bonito. – Concordei e andamos ao redor do Palácio de Cristal. Sentamos em um banquinho próximo ao Palácio e ficamos observando as pessoas que passavam. – Fica complicado conversar com você, se para tudo você responde "não quero falar sobre isso". – Ele falou novamente, após um tempo, ainda olhando para frente. – Foi o Ricardo de novo? – Neguei. – O Fabinho? – Como ele sabia do Fabinho? Neguei novamente. Então ele me olhou como se tivesse finalmente entendido. – Foi porque eu falei que éramos como irmãos? – Meu olhar se encontrou com o seu e eu não consegui desviar. Eu demorei para negar, mas eu neguei, porque não queria que ele entrasse naquele assunto. Mas de alguma forma, ele sabia que era aquilo. E eu sabia que ele interpretaria errado. – Eu achei que a gente tivesse chegando à algum lugar, mas pelo visto, eu cheguei sozinho. – Ele falou, com o tom da voz meio amargurado. – Eu não sei o que te fiz para você ter tanta aversão à mim dessa maneira.
- Você não fez nada. – Falei em um fio de voz.
- E você espera que eu acredite nisso? Você adora minha mãe. Apóia o relacionamento dos dois, então não tem nada a ver com o fato de estarmos entrando em sua vida, na sua família. Claramente o problema sou eu. E eu não consigo entender. – Ele passou a mão no rosto com raiva, e puxou os fios do seu cabelo, frustrado.
- Você se importa? Você tenta entender porque se importa? – Eu olhava para ele, tentando ler suas reações.
- Se eu não me importasse não estava aqui, insistindo para você me explicar. – Ele falou com raiva, se levantando, dando uma volta como se quisesse ir embora, mas acabando por sentar novamente em seguida. Então eu contei. Contei a verdade para ele, a patética verdade sobre o que tinha acontecido naquela festa quando a gente era criança. E quando eu terminei, ele me olhava com a boca aberta, provavelmente pensando que eu era muito mais idiota do que ele havia imaginado até então.
- Fala alguma coisa. – Eu não estava mais aguentando vê-lo me olhar daquela maneira.
- Caraca, Isa... – Ele me chamou pelo apelido pela primeira vez sem que fosse ironia, sarcasmo, fingimento e eu não sabia como interpretar aquilo. – Por que você não me contou isso antes? Você tem noção do quanto isso é bobo? – Ele estava falando docemente, mas eu nunca quis contar essa história pra ninguém exatamente porque eu sabia que era uma coisa boba, mas que significara muito para mim. – Eu não imaginava que palavras idiotas de meninos infantis fizessem tanta diferença na vida de uma garota. Me desculpa. – Ele foi sincero e pra falar a verdade, eu nem acreditava que ele estivesse levando aquilo tão a sério quanto ele estava. Eu achava que o dia que ele descobrisse, faria um escândalo, me chamando de patética e idiota, no mínimo. – Eu só não entendo porque você pegou raiva de mim, especificamente. – Essa era a pergunta que eu queria evitar e o motivo pelo qual não pretendia contar aquilo para ele nunca. Mas agora já era.
- Porque eu gostava de você.
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Ele e Ela [Os Dois Lados da História] [COMPLETO]
Teen FictionISADORA "Dentre tantas mulheres no mundo, meu pai tinha que escolher ficar justo com a mãe do garoto mais insuportável da face da Terra. Como uma mulher tão legal quanto a Cíntia, havia gerado um ser assim irritante? O Rafael me tirava do sério, me...